quinta-feira, 29 de outubro de 2015

do possível num contexto de um "governo de esquerda"

Um "governo de esquerda" não representa, pelo menos por si só, a possibilidade de uma alteração significativa do estado de coisas existentes. O plano ontológico onde se dão um conjunto de (re)produções de determinadas práticas e relações sociais, de determinadas relações com o mundo e consigo mesmo, não é passível de ser transformado através de um apelo à transcendência - venha ela de Deus, do Partido ou do Sujeito -, mas apenas através de uma lógica imanente a essa mesma situação. E isto mesmo que possam ser tomadas algumas medidas no sentido de uma melhoria a curto prazo das condições de vida da população em geral - sejam elas ligadas à precariedade e à legislação laboral, relativamente a temas como a saúde, educação e habitação, ou o acesso a direitos como a adopção por casais do mesmo sexo, o reverter das alterações da lei sobre o aborto, ou a despatologizacao de identidades trans*. O espaço do Estado, e em particular quando restrito à escala nacional e a um conjunto de funções restritos, não é um espaço de intervenção capaz de permitir mudanças significativas.
Além disso, o atual debate sobre a possibilidade de um governo de esquerda não tem apenas como mérito o tornar mais claro o regime pós-democrático em que nos encontramos - de aspetos mais estruturais e que se acentuaram com a crise e o regime de excepção que se torna a norma e é usado como dispositivo de governo, a limitação do espaço do possível ou a estruturação e redução do debate no espaço público. Algo que é traduzível tanto na observação de quais são os sujeitos com direito a desempenhar determinadas funções, na limitação do debate político a dimensões apresentadas como "meramente técnicas" e restritas a "especialistas", ou às opiniões de um conjunto de "comentadores" que se repetem entre si e são incapazes de sair de uma concepção elitista de democracia. 
Sendo que, e isto é necessário sublinhar, esta incapacidade de transformação e intervenção até do Estado não é tanto devida a uma qualquer falta de vontade e/ou capacidade de quem possa exercer essa função, mas sim pelo facto de essa mesma função - pelo menos no seu atual contexto e segundo a forma que adopta - exigir a adopção de um conjunto de procedimentos que impedem, por si só, a possibilidade de "outra coisa". Desde a lógica de delegação e representação à reprodução da divisão entre governantes e governados que subjaz ao modelo que estrutura este sistema de governo, a aspetos mais recentes como uma contínua perda de soberania à escala nacional (e não só) e de atuação decisiva em determinados setores da economia (ainda que continue a ser relevante no sentido de uma determinada (re)produção biopolítica de subjetividades e de intervenção para as criações de possibilidade da atividade económica e das lógicas de competitividade que a caracterizam), a todo um outro conjunto de constrangimentos e estruturas mais vastas que tornam essa mesma escala e esfera do Estado um agente com um poder de determinação reduzido. Assim, e mais do que uma qualquer capitulação a outros interesses ou políticas, são as próprias condições de possibilidade de uma transformação através do Estado que se tornam cada vez mais impossíveis - se é que alguma vez o chegarem a ser. Algo que não só não deve ser visto como um problema em si mesmo, como também não implica necessariamente dizer que este é indiferente e que indiferente também seria quem seria responsável pela sua gestão.

Mas, mais interessante do que o debate relativo ao Estado, é aquele que o coloca em relação - senão mesmo em confronto -, com todo um conjunto de movimentos políticos, de sensibilidades e estratégias diversas. Neste sentido, poder-se-ia, de forma necessariamente redutora, dividir essa análise em dois grandes planos: um focado nas potencialidades que um governo de esquerda poderia permitir a outras subjetividades políticas - mesmo aquelas que se encontrariam em confronto direto com a própria ideia de governo e de estado -, e um outro mais focado no seu oposto. Sendo que, talvez, o mais interessante seja a análise das tensões e contradições entre estes planos, as quais se perspetivam adensar a curto prazo caso se confirme a possibilidade de um governo de esquerda (ou caso a sua não concretização espelhe ainda mais o já referido contexto pós-democrático e de excepção no qual nos encontramos).
A possível mudança de governo e o contexto e a forma como tal sucederá, implica, desde logo, o questionamento sobre se o impasse vivido nos últimos 2-3 anos ao nível de um refluxo dos movimentos sociais em Portugal (mas também na Europa de forma geral) poderá ser de algo forma revertido. Isto é, se se tornará possível, ou não, o adensar, através de um novo contexto político, de um conjunto de práticas em que se intensifique a conflitualidade social, isto em várias formas - seja ao nível de exemplos mais "clássicos" como é o caso de manifestações ou de greves, ou, e talvez de forma mais decisiva para uma acção política imanente, a multiplicação de um conjunto de experiências que tenha como horizonte o quotidiano e a vida - sem opôr estas dimensões à política e à ética -, o que poderá ocorrer através de experiências tão variadas como cantinas cooperativas, espaços de auto-gestão afetos aos mais diversos temas, sessões de debate, espaços de encontro, etc. 
As possibilidades que aqui são identificadas poderiam ser potenciadas por um suposto contexto político mais "progressista" e em que todo um conjunto de contradições se tornasse mais visível - algo referente à 1ª hipótese, de carácter emancipatório. Ou, pelo contrário, esse mesmo contexto político poderia não ser desenvolver um conjunto de mecanismos e dispositivos que procurassem "impedir" o conflito social - algo que poderá ser feito inclusivamente pela satisfação imediata de um conjunto de necessidades e/ou provisão de um conjunto de serviços, não deixando de o realizar em conjugação com a divulgação e criação de expetativas futuras no mesmo sentido -, ou pela possível institucionalização e controlo de movimentos sociais, protestos e reivindicações autónomas e externas ao Estado.
A única coisa que se poderá esperar é uma tensão entre estas duas vertentes, com diferentes temporalidades, reportórios e sentidos. Fora disso, é arriscado - para não dizer mesmo absurdo -, perspetivar qualquer certeza em relação ao futuro. Sendo o espaço da política marcado pela contingência, pouco mais existe a fazer para além de um contínuo trabalho de (re)definição estratégica, bem como pela tentativa de intervenção coletivo no aqui e agora, no desenvolvimento de formas-de-vida e relações com o mundo que procurem ser o mais próximos daquilo que se procure lutar.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

das críticas ao voto e ao não-voto

O voto e a acção política institucional não me interessam particularmente, e isto por razões várias que podem ir da crítica da representação e da delegação de "vontades" e "legitimidades" de decisão, da distinção estabelecida entre governantes e governados e que tende a (re)produzir diversas desigualdades, da lógica excessiva e quase que exclusivamente formal de acção e organização política que preconizam, entre outras razões.  Algo que se traduz numa redução das possibilidades de contestação e contingência política, e, como tal, numa incapacidade de uma transformação significativa através dessas vias - o que não é o mesmo que afirmar que não possam existir diferenças entre governos, e que a partir dessa esfera institucional não se possa obter algo. Acredito que a ação política não se restringe a esse acto, ainda que o possa incluir (mas sempre num questionamento daquilo que é um contexto e as possibilidades de atuação no mesmo, identificações estratégias específicas que poderão ver no voto uma possibilidade, mas que não se restrinjam a este). 
Assim, a minha posição em relação ao voto, e a crítica que aqui pretendo explorar, não é a do seu uso ou não uso, do ato de votar ou de não votar, mas antes das subjetividades e das possíveis relações e estratégias que se criam. Uma concepção que tome o voto como algo de absoluto, valendo por si, não pode deixar de merecer a minha crítica - seja ela expressa pelo ativista e defensor da cidadania política nos moldes clássicos de representação enquadrados no liberalismo, encerrando aí a totalidade de acção política possível concedido ao "cidadão"; seja por parte de quem recuse votar simplesmente por ver em tal prática algo de tão forte que poderia manchar e colocar em causa a sua coerência ideológica (e não a recusa de votar devido a uma reflexão estratégia específica, a qual pretenda desenvolver o seu espaço de acção política em outras esferas, explorando outras formas de organização política). Isto não implica tanto a questão de saber se se vota ou não (questão que a mim não me interessa particularmente), mas antes a da relação que é possível constituir com essa prática - isto é, que subjectividades são possíveis, que possibilidades políticas se podem fechar ou abrir num determinado contexto (não deixando de reconhecer que esse contexto é mercado por determinadas relações de poder e concepções sobre o que é a atuação política e os espaços em que esta se dá), que estratégias se podem relacionar com ele.
Neste sentido, e aqui focando-me num determinado conjunto de críticas feitas a quem votou PSD/CDS (ou a PS) e/ou a quem não votou de todo (acusando tais pessoas de condições tão variadas como de ignorância, alienação, ou até da prática de sadomasoquismo, não deixando tal crítica de ter presente uma dimensão moral que remete para o que se poderia designar de uma acusação de traição realizada pelo "povo" em relação ao próprio "povo"). Estas críticas, na minha opinião, não me deixam de ser subsidiárias desta visão absoluta e totalizadora em relação ao voto. O pressuposto que me parece presente nesta crítica, é o de quem, face a uma determinada situação (a qual poderia ser descrita de diversas formas, mas que se poderia resumir de forma geral como a de uma marcada por um contexto marcado por uma enorme austeridade e sem grandes esperanças presentes de o superar), deposita a quase totalidade de superação dessa mesma situação, a sua esperança de um outro possível, nesse momento que é o voto. E mesmo sendo certa que esta crítica surge de quem até participa e/ou participou em outro tipo de experiências políticas e coletivas ao longo destes últimos anos, podendo estas deter um carácter mais ou menos antagonista em relação ao governo e posicionando-se mais ou menos contra a situação em causa, a forma como estas críticas se expressa faz depreender essa participação é feita tendo como fim a política institucional, e/ou que essa participação tende a partir de uma dicotomia entre a política e outras formas de acção que se não se restrinjam a essa mesma esfera institucional (desde simples práticas do quotidiano às relações inter-pessoais, de associações de bairro à organização de jogos de futebol). Entendem-nos: a raiva, ainda que justificada, à permanência da coligação no governo, quando dirigida da forma que tem sido feita em relação a quem votou em PSD/CDS (ou se absteve e assim não votou "contra"), surge como resposta a uma crença na capacidade de superar esse governo e as políticas que representa a partir desse gesto (o voto), esquecendo não só que a sua presença e influência se efetiva em mais do que um local (não sendo reduzível à ocupação de um posto de gestão, mas presente, desde logo, nas subjetividades produzidas pelo neoliberalismo, as quais marcam o nosso quotidiano), Resumindo, as críticas que fazem alusão à suposta ignorância, estupidez e alienação dessa massa que daria pelo nome de portugueses, não só é marcada por uma concepção elitista, como profundamente institucional da política, aceitando e reproduzindo acriticamente as suas formas, vendo no voto uma prática com um valor em si mesmo, dotado da capacidade de transformar relações sociais.
Esta posição não é certamente uniforme, algo que se deve à influência de outros factores e pressupostos que a enformam. Entre esses, o qual já foi brevemente referido, é o da crença na existência de uma entidade supostamente homogénea e óbvia - os "portugueses" ou o "povo" -, entidade essa que, face a uma determinada situação (em que, de alguma forma, se parece assumir que teria havido um efeito homogéneo e semelhante a todos, bem como um interesse comum na sua superação, independente da existência de tensões e diferentes visões sobre essa mesma situação/realidade), deveriam ser capazes de analisar a realidade de uma forma sensivelmente semelhante e extrair daí um impulso que os levaria a agir de forma "consciente" e/ou "consequente". Uma acção que - e agora fazendo a ponte com a questão anterior -, presume-se, teria também um sentido óbvio, e que só quem é "ignorante ou alienado" é que não seria capaz de o "ver" de forma objetiva - não deixando de reproduzir, assim, uma concepção elitista e voluntarista da política. Uma crítica que é feita aos que supostamente seriam os alienados e ignorantes, procurando marcar uma diferença em relação a esses, pretendendo diferenciar-se positivamente de um grupo que, anteriormente, supostamente seria integrado num todo maior, do qual os "não-alienados" e "não-ignorantes" também fariam parte (ainda que depois traídos pelos "outros").

O campo da análise política institucional não me interessa particularmente (nem em relação a esta tenho qualquer habilidade e capacidade particular, como nem sequer tenho em relação a outras), mas admito que estas reações também me deixam algo perplexo por me parecer que, mesmo face ao resultado das eleições, me parecer ser possível observar algumas possibilidades que se abrem. Desde logo, parece-me estranho que esta desilusão surja por a vitória ter recaído no PSD/CDS, e não no PS (agora tomado como partido que, num contexto de governação, poderia ser capaz de oferecer algo de diferente e de carácter emancipatório). Deixam ainda perplexo a defesa de um de um suposto "governo de esquerda" PS-BE-CDU, em que se esquece não só tudo o que separa PS de BE e CDU, como se assume que tal governo poderia, por si só, ser capaz de nos retirar da austeridade; ou que se este governo de esquerda não acontecer, tal não seria mais do que um indicador da incapacidade da esquerda em se unir e assumir as suas "responsabilidades", ao contrário do que sucede com a direita - esquecendo o que de errado se encerra em tal concepção gestionária, bem como de simplista em relação ao uso do estado (tomado como um instrumento neutro). Mas, e de forma central, parece-me que uma análise destes resultados não pode deixar de ver como positivo o facto de PSD/CDS perdem a maioria e com isso a estabilidade governativa de que disponham, que o PS se anule cada vez mais (incapaz de ter um posição política que o diferencie, nem se distinguido da direita nem se afirmando como uma força política à esquerda), bem como a subida de BE e PCP que poderá fazer aumentar alguma representação de outras propostas e subjectividades (mesmo que num plano institucional).
Em particular, e mais do que esta maior representatividade de outras dimensões políticas, parece-me interessante a própria possibilidade de, face a um maior instabilidade, se acentuar as possibilidades de contestação não só a este governo, como à própria lógica de governação e à sua suposta necessidade. E isto de uma forma que, ao contrário daquele que me parece ser a lógica voluntarista e apostada num simples esclarecimento de consciências, em que cada um deveria assumir a sua responsabilidade e dar o seu "mínimo" contributo para a sociedade (como poderia ser votar), dar-se uma aposta em outras formas de se organizar e relacionar, as quais não estejam centradas nem numa concepção centralista e localizada do poder (encerrada em instituições como o Estado), nem numa agência e numa função pré-estabelecidas e que um dado sujeito deveria cumprir, uma acção que pelo seu enquadramento se inscreveria imediatamente no espaço político, e que teria como fim último o melhoramento de uma dada totalidade (tomada como natural).
Ao invés de um "espanto" sobre as opções de voto, sobre o "porquê" e/ou o "como" foi possível este resultado, parece-me mais interessante uma análise e uma resposta que em vez de procurar explicações na "ignorância" e na "alienação/apatia" do "povo", se foca na forma como as subjetividades são produzidas nos atuais paradigmas de governamentalidade, e nas possibilidades de ir para além destas. Uma crítica de uma determinada concepção de subjetividade - em particular a de um cidadão dotado de consciência política e capaz de agir de forma responsável de 4 em 4 anos, capaz de melhorar o mundo (ou o país) através da sua mera acção individual) -, bem como uma crítica à forma como se concebe o poder - ao invés de uma lógica localizada e transcendente do poder, uma imanente, que opte pela experimentação de outras formas-de-vida, outras formas de se organizar, outras relações com o mundo.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Hillary e a redução do possível

A recente candidatura à presidência dos EUA, anunciada por Hillary Clinton, e a sua possível eleição, pertencem a um plano institucional e elitista da política que me interessa muito pouco. No entanto, a partir deste caso, torna-se possível pensar algumas questões e tensões que surgem no âmbito do ativismo, e que importa explorar. Neste sentido, interessa-me não tanto elencar o que de errado existe ou possa existir associado a Hillary (algo que, por exemplo, pode ser encontrado aqui e aqui), mas o que este caso representa ao nível das relações entre política e simbolismo/representação, política e visibilidade, movimento e institucionalização.
Em particular, este caso situa-se no âmbito das discussões e múltiplas visões dentro do feminismo. A sua relação com o movimento encontra-se desde logo marcada pela forma como determinadas posições feministas tendem a apoiar e a ver em Hillary uma figura e uma líder que poderá fazer avançar a luta feminista (nem que seja assumindo que a eleição de uma mulher é sempre uma vitória feminista), bem como aquilo que são as próprias posições feministas tomadas por ela (ainda que, e fazendo uso de alguma linguagem utilizado dentro do feminismo, se possa dizer que o feminismo de Hillary é um feminismo mainstream, liberal, branco, de classe, em suma, privilegiado). Tendo em conta estes dois factores, tornava-se assim previsível que não só parte do feminismo visse em Hillary a sua candidata, como a própria Hillary tomasse o feminismo - ou parte dele - como um movimento a partir do qual pode tirar ganhos políticos.
Assim sendo, tendo em conta aquilo que são as posições de Hillary e a sua relação com o feminismo, admito que se torna difícil compreender a relativa aceitação - e até mesmo entusiasmo - que a sua candidatura recebeu em alguns sectores do movimento (novamente, em particular naqueles que são os sectores mais privilegiados do mesmo). O percurso de Hillary (consultar os dois links deixados em cima) não augura nada de bom relativamente a uma possível governação sua, e muito dificilmente a sua política poderia ser considerada como feminista, e ainda menos conotada com um feminismo intersecional. Sendo que, é certo, tal não deixa de se ver, e seguramente de forma ainda mais decisiva, àquilo que são as estruturas sociais e relações de poder atualmente existentes, as quais são claramente limitadoras daquilo que é possível fazer (desde logo num quadro institucional), e que certamente não são simplesmente reformáveis a partir de uma só pessoa, mesmo que essa pessoa ocupa uma posição de poder com tamanha centralidade e importância.
Antes de avançar, importa só esclarecer que, apesar de tudo, é de reconhecer a importância simbólica e de representação que estaria associada a uma eleição de uma mulher como presidente dos EUA, a qual seria a primeira da sua história. O simbólico também importa na política, e certamente que esse facto não é de somenos em termos daquilo que é a estruturação simbólica do patriarcado, em particular ao nível da atribuição de lugares de poder a determinados géneros, com efeitos simbólicos e performativos que são de considerar. Além disso, a crítica a Hillary deve evitar o argumento recorrente, e falacioso, de associar de forma redutora e exclusiva a presença de mulheres, em lugares de destaque na política, a figuras como Merkel, Largarde ou Thatcher. Sejamos claros, a crítica não deve nem ignorar as dimensões simbólicas associadas à chegada de uma pessoa de uma minoria historicamente marginalizada e discriminada a um lugar de poder, nem, de certa forma, reproduzir uma lógica machista que não só associaria o papel das mulheres na política a algo de negativo, como reproduz a lógica existente na sociedade de constante procura e exigência de "perfeição" em relação às mulheres, como se a elas fosse exigido mais para ter acesso e merecer o mesmo - ainda que esse "mesmo" seja algo de tão desprezível e palco do pior que há na política e na sociedade, como ocorre com a presidência dos EUA.
No entanto, e voltando ao raciocínio anterior, não posso deixar de considerar um erro o apoio de certos sectores feministas a Hillary. Não só porque aquilo que é a reprodução de uma concepção e de uma linha mais privilegiada dentro do feminismo, mas também pelos riscos de uma constante "institucionalização" do feminismo que o tem tornado não só cada vez menos crítico das relações de poder na sociedade, e que, no caso em análise, corre ainda o risco de ser visto como uma cooptação do mesmo - à semelhança da utilização do feminismo aquando da invasão do Afeganistão e do Iraque, o feminismo agora é utilizado para legitimar o biopoder, associando o feminismo aos interesses e às políticas dominantes (classistas, machistas, heterossexistas, racistas, imperiais, etc), descredibilizando o próprio movimento com tal gesto.
Neste sentido, a questão principal está na forma como, com tal apoio de sectores feministas e com a instrumentalização do feminismo por Hillary, se dá uma reprodução das lógicas de diferenciação e desigualdade social e política, uma clara reprodução das relações de poder e não uma crítica e um ataque às mesmas.
O biopoder, as suas instituições e formas de atuação são reproduzidas e legitimadas - neste caso, através da incorporação de vozes que se suporia como críticas. Algo que, na minha opinião, deve-se igualmente a uma concepção da política, e em particular de a imaginar e de a praticar, que não posso deixar de tomar como redutora - trata-se de uma visão que adere, muitas vezes de forma acrítica, à retórica do "mal menor" e do "voto útil", uma política defensiva e de mínimos (garantindo-se algumas cotas e alguns direitos de facto, mas sem que as estruturas sociais que originam as desigualdades sejam alvo de crítica e obrigadas a alterar-se, se não mesmo a serem transformadas totalmente). Além disso, é notória uma visão da política que tende a conceber o poder como algo de centralizado e localizado em alguns espaços de poder, e não como imanente à sociedade, em termos de relações de poder que estruturam o possível. Uma visão da política reduzida à dimensão institucional e individual, e que assim reproduz e legitima uma política e uma sociedade individualista, elitista e fundamenta em hierarquias (desde logo, entre representantes e representados).
Estou consciente das dificuldades de tal estratégia, mas não consigo deixar de conceber como melhor opção uma política que procure, tanto quanto possível, não reproduzir o biopoder e as suas lógicas de atuação política. Em particular, acredito que mais do que apoiar Hillary e esperar que desse apoio surja uma transformação ao nível das relações de género, seria melhor procurar criar um movimento autónomo.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Política e Sujeito em Butler

Voltando à questão da relação entre política e sujeito, desta vez a partir da problematização apresentada por Judith Butler em Gender Trouble, interessa-me, neste post, abordar, mesmo que de forma sucinta, um outro ponto.
Não sendo aqui o lugar para apresentação da tese central apresentada por Butler, relativa à performatividade de género, importa-me salientar a forma, a meu ver original, como estabelece a relação entre política e sujeito. Ao contrário do que poderia ser suposto, tratando-se de uma abordagem feminista e queer (e, logo, muitas vezes enquadrada nas denominadas "políticas de identidade"), a abordagem de Butler é singular não só pelo questionamento feito relativamente à existência de um sujeito definido a priori  (a tese de Butler vai no sentido não tanto de negar a existência do sujeito "mulher", mas de questionar e desconstruir a suposta universalidade, unicidade e coerência de tal categoria, salientando a sua diversidade e contingência, formada num dado contexto histórico de relações de poder, obrigando a que uma política feminista procure analisar e questionar sempre o seu sujeito político). A abordagem de Butler torna-se singular, justamente, pelo facto de salientar que, muitas vezes, uma política feminista (e, pretendemos aqui alongar, a política em geral), acaba por produzir, através das práticas de representação e ação política, o suposto sujeito político que diz representar e que toma como fundamento ontológico da sua própria existência enquanto movimento político.
Esta produção do sujeito através da sua representação, convém lembrar, não é exclusiva da política feminista, mas, justamente, remete para os próprios processos pelos quais os sujeitos são criados através da linguagem, e, em particular, através de determinados discursos, determinados regimes discursivos num quadro específico de relações de poder. Seria assim possível afirmar que um dos limites da política, da política em geral, quando alicerçada numa concepção bastante precisa e delimitada daquilo que é o seu sujeito político (seja a mulher, seja a classe operária, etc), passa não só pela dificuldade de tal sujeito político representar e descrever um sujeito com tais características específicas mais ou menos definidas, mas, igualmente, pela necessidade de que tal política não implique a produção, ou a adequação, de um dado sujeito àquilo que são características que se tomam como específicas destes - características estas, muitas vezes, tomadas como "anteriores" àquilo que são as práticas e contextos políticos e culturais próprios em que se desencadeia uma dada prática política. Ou seja, passam a ser tomadas como "naturais" as características que posteriormente irão definir aquilo que deverá ser, no seu discurso, nas suas práticas, nas suas relações, um dado sujeito político, e não tanto deixar em aberto a sua formação e construção, no quadro da ação política.
Além disso, para além do risco de uma dada política acabar por produzir e definir um sujeito político próprio - um sujeito político que, mesmo que não totalmente, não se deixa de adequar a determinadas normas, regras, comportamentos, discursos, de forma a relacionar-se com o movimento político específico em que se insere, numa ação que não deixa de envolver determinadas inclusões e exclusões -, essa produção, pelo facto de ocorrer num dado contexto histórico, não deixa de ser influenciada por aquilo que são as normas e relações de poder em presença. No entanto, e como já explorado em posts anteriores, é igualmente verdadeiro que, face ao facto de qualquer política ser sempre historicamente situada, e que, logo, mesmo que as tentativas de luta e emancipação face ao contexto experienciado sejam sempre marcadas por tal dimensão ontológica, esse dado contexto é sempre o início e o fim da política - ou seja, tanto a possibilidade de reprodução das relações de poder experienciadas, como a possibilidade de, no seu seio, procurar sinalizar os seus limites e construir possibilidades de fuga em relação às mesmas, no sentido da construção do "novo".
Em último caso, poderia-se dizer que uma política sem representação (não unicamente a representação parlamentar, mas a representação de uma subjetividade, de uma experiência política, de um pensamento, etc) e uma política sem um dado sujeito político, seria impossível. Não entanto, e mesmo dada a sua impossibilidade, poderia-se afirmar que seria justamente ideal uma política sem se encontrar presa à necessidade de representação e da existência de um sujeito político. A existência de tal política, sem uma representação exterior a ela, implicaria que esta se concretizaria na sua totalidade. Contudo, e talvez de forma mais decisiva, poder-se-ia igualmente afirmar que é dada a esta arbitrariedade e contingência da política que esta adquire o seu carácter mais inovador e inventivo, associada a algo não preso a algo que remeteria para um dado interior, mas a um contínuo processo de produção do novo - de uma nova subjetividade, de um novo contexto. Como conclusão, e regressando a Butler, poder-se-ia dizer que a política deve não tanto recusar a representação e um sujeito político, mas sim questionar, em cada contexto, quais as condições de emergência do mesmo, das suas subjetividades e processos de transformação, das possibilidades de ir para além das normas e relações de poder atualmente existentes. Sendo que, e agora remetendo para Agamben, é a partir de tal abertura que uma vida ética e política se torna possível.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Política e identidade

Recuperando as reflexões no post anterior, no qual procurei - ainda que sem chegar a qualquer conclusão final e definitiva -, pensar não só a possibilidade como a suposta necessidade de uma política sem um sujeito político e uma identidade definida (pelo menos à partida), acredito que um conjunto específico de questões podem e devem ser colocadas, as quais brevemente anunciei no final desse texto.
Em particular, e expondo agora de forma mais clara a preocupação final referida no post anterior, um dos problemas possivelmente colocados a um pensamento e a uma prática política realizada em tais termos, seria o de não considerar, na devida forma, aquilo que são as atuais desigualdades de poder entre diferentes grupos sociais. Nesse sentido, e mesmo que procurando pensar ou uma política por vir - já não determinada por uma forma social e política particular -, ou simplesmente procurando "renegar" no momento presente aquilo que é o contexto e as identidades particulares e subjectividades que são produzidas pelo biopoder - uma política que quase que pretenderia escapar a uma especificidade histórica concreta -, e que, possivelmente, teria como consequência uma menor consideração de determinadas formas de descriminação e opressão experienciadas por grupos sociais particulares (mulheres, negros, população LGBTQ+, ...).
Esta é, evidentemente, uma questão com uma longa história no âmbito da política e dos movimentos sociais, a qual ganhou particular destaque nas décadas mais recentes - em particular, no quadro daquilo que se pode considerar como uma menor centralidade conferida à denominada classe trabalhadora, envolvendo um questionamento da universalidade e do papel histórico que lhe foi associado (havendo inclusive quem afirme o seu fim), e a emergência de uma diversidade de subjectividades e identidade políticas no âmbito da ação política. 
No entanto, e até por não ter tal pretensão, não será neste texto que se recuperará todo o debate produzido, nem se explorará aquilo que são quer os pontos comuns quer as divergências entre as diferentes posições, possíveis limitações e aspectos futuros a considerar. Ainda que, e como breve nota, não posso deixar de referir que, na minha opinião. se trata de um debate muitas vezes marcado e preso em falsas dicotomias, como sejam as de universal e particular, ou as de identidade e diferença.
Contudo, neste texto, interessa-me sobretudo explorar aquilo que são algumas propostas recentes que, mesmo que potencialmente enquadráveis em algum "dos lados" deste debate, surgem de uma forma que, devido à sua singularidade, permitem não só redefinir cada uma dessas posições, como potencialmente ir para além destas. Em particular, pretendo focar-me no pensamento de Agamben, autor que não só não seria enquadrável numa política de identidade, como dificilmente seria reconhecido como estando no outro campo, pelo menos por aqueles mais irredutíveis na defesa de uma política centrada na visão da classe operária como dotada de universalidade e com um papel histórico por cumprir. 
Para a problematização que pretendo desenvolver e aqui apresentar, parece-me que aquilo que de mais significativo poderemos retirar de Agamben passa não só pela forma como este pretende ir para além de determinadas dicotomias ou pólos que estruturam o pensamento político contemporâneo - desde logo o de universalidade ou particularidade - através de propostas conceptuais como as de forma-de-vida ou de singularidade (nas quais vai além da dicotomia entre individual e coletivo, por exemplo), mas, acima de tudo, pela forma como nos apresenta as potencialidades de tais formas de conceber e praticar a política em tais termos. 
Em primeiro lugar, Agamben recorda-nos o perigo que é o estabelecimento de uma política centrada na identidade, e, em particular, na forma como tal política, geralmente associada à luta pelo reconhecimento de direitos, acaba por reproduzir aquilo que é a própria lógica em que se funda o biopoder, reproduzindo assim a própria soberania aquando da sua relação específica com o Estado - e, logo, o estado de excepção que se tornou norma, bem como a vida nua, uma vida sem forma, uma vida não-política, uma vida sem poder e sujeita a um poder exterior.
A forma de superar o atual estado de excepção e de se criarem formas-de-vida singulares capazes de ir para além deste, não deixa de constituir uma interrogação que apresenta tanto de complexo como de fundamental. Sendo que, e agora focando-nos na forma como esta questão se cruza não necessariamente com uma política de identidade, mas com aquilo que são as desiguais relações de poder existentes na sociedade, em particular ao nível das relações entre diferentes grupos sociais, poderíamos questionar até que ponto a necessidade de realizar o projecto político anteriormente identificado não terá de implicar uma consideração crítica e particular das relações de poder atuais. Isto é, e aqui assumindo uma posição que responde afirmativamente à questão anterior, não apenas uma política que reconheça aquilo que é a já referida produção levada a cabo pelas relações de poder atuais - e que, assim, reconheça que não existe nada de natural e ontológico em ser-se "homem" ou "mulher", "branco" ou "negro", "heterossexual" ou "homossexual", "cis-género" ou "transgénero" -, mas que tenha quer como pressupostos quer como horizonte uma ética capaz de considerar e transformar as relações de dominação e opressão atualmente existentes (relações essas que não apresentam um centro único e que, como tal, não são unicamente derivadas do Estado), as quais não deixam de se encontrar relacionadas com as normas e relações produzidas pelo biopoder, e que, como tal, são responsáveis pela restrição e reprodução de determinadas possibilidades políticas, do possível.
Se o objectivo passa pela constituição de formas-de-vida (enquanto conjunto de singularidades sem identidade; num sentido potencialmente próximo à noção de multidão como apresentada por Negri), as quais não são nem particulares nem universais, marcadas nem pela mesmidade nem pela diferença, meramente individuais ou colectivas, identitárias ou não-identitárias, e que, mesmo que sendo tomadas de forma processual e aberta, não deixam de implicar, face ao apresentado, o questionamento das identidades e práticas atuais. Assim, e como exemplo, importa pensar uma forma-de-vida onde a singularidade que a constituí não seja definida pela sua adequação a determinados modelos de masculinidade ou feminilidade, mas , precisamente, vá para além destes e das dimensões normativas e normalizadores que preconizam.
Existe, assim, a necessidade de, mesmo que não partindo de uma política identitária -ainda que podendo adoptar uma política que tenha em linha de conta as diversas singularidades -, considerar e criticar aquilo que são relações de poder e significados culturais específicos, de forma a que, no momento de constituição de formas-de-vida, não sejam tomadas como naturais - mesmo que de forma "inconsciente - aquelas que são as identidades dominantes. Sendo que o perigo que tal aconteça é uma das principais questões introduzidas pelas reflexões produzidas ao nível das políticas de identidade, e não só. Algo que se fundamenta pelo facto de a reprodução identitária, e da lógica pela qual funciona o biopoder e o estado de excepção, não ser exclusiva da adoção de uma política de identidade por parte de minorias políticas. Mas, e talvez ainda de forma mais decisiva, esse perigo coloca-se precisamente caso sejam tomadas como naturais - e, logo, não questionadas -, as identidades atualmente dominantes e privilegiadas, e que assim poderiam influenciar, de forma decisiva, as formas-de-vida a constituir. Ou seja, e concluindo com um regresso a um texto anterior, trata-se da necessidade de colocar em prática processos de desidentificação e de subjectivação.