terça-feira, 26 de abril de 2016

Notas em torno da modalidade da existência - reflexões a partir do straight edge

Numa entrevista para o livro "Sober Living for the Revolution: Hardcore Punk, Straight Edge, and Radical Politics", Ian MacKaye (vocalista de bandas como Minor Threat e Fugazi) refere que, para ele, o straight edge representa uma declaração pelo direito de viver a vida da forma como se desejava. Esta afirmação, não só por ser proferida a partir de uma implicação que à primeira vista poderá parecer mais individual que coletiva - "Straight edge was just a declaration for the right to live your life the way you want to (...)" -, não deixará de suscitar diversas interpretações e dúvidas sobre a sua adequação ao movimento em causa - como sempre acontece sempre que se procura, mesmo de um ponto de vista pessoal e situado, definir qualquer movimento estético, ético e/ou político. No entanto, se enquadrarmos esta afirmação no seguimento da entrevista e do raciocínio que se estava a explorar, e se a lermos a partir de outras reflexões (como se pretende fazer aqui), poderíamos afirmar que essa frase tem como base uma forte implicação ética sobre aquilo que se poderia considerar como uma vida política, bem como as relações que se estabelecem entre indivíduo-coletivo em qualquer experiência comunitária/coletiva.
A afirmação de MacKaye surge no encadeamento de um raciocínio sobre as reações que as suas opções ético-políticas tiveram, tanto as suas expressões enquanto forma de vida como as letras escritas por ele (em particular, a letra de "Straight Edge"). Sendo que aqui, como se poderá perceber ao longo do texto, não interessa tanto explorar o que seriam as virtudes das opções e formas de vida desta ou daquela pessoa, deste ou daquele movimento, desta ou daquela cosmologia - desde logo, não as de MacKaye. Antes, salientar a forma como este se posiciona relativamente ao confronto em causa, às reações que obteve devido às opções por ele tomadas (reações que, em certos momentos, chegaram a atingir a forma de ameaça).
Como afirma MacKaye, a parte mais importante da letra de "Straight Edge" não é quando este afirma que não vai fumar isto ou aquilo, ou que considera que tem coisas mais importantes a fazer, ou outra qualquer conduta por ele tomada - o que não é o mesmo que afirmar uma equivalência, num plano ético, dessas mesmas práticas e condutas. A parte mais importante da letra diz respeito ao verso inicial, "I`m a person just like you.". Esta frase, pelo menos da forma como aqui se pretende explorar, não é a reivindicação de uma essência comum relativamente ao que seria a humanidade (até pela subsequente afirmação de uma diferença em termos de práticas e concepções sobre a vida e o mundo), nem implica a afirmação de uma superioridade que colocaria uns (aqueles que adiriam ao straight edge) numa posição mais "humana" e/ou moralmente mais elevada (dessa forma também prescrevendo uma identidade, ou uma forma de vida, que deveria ser atingida). Com esta frase, cujas implicações se observam ao longo de toda a entrevista, recusa-se igualmente um certo moralismo e uma atitude prescritiva em relação ao outro, atitude essa que em certos momentos e práticas caracterizou parte do movimento straight edge.
No entanto, e é também por aqui que esta posição se torna interessante e adquire uma dimensão ética-política que permite questionar a tal relação entre indivíduo-coletivo, tal não implica uma equivalência de todas as práticas e opções, de todas as formas de vida, de todas as concepções do mundo. Esta posição, como é notório em toda a entrevista, parte de uma ética situada, a qual procura não o alastramento do que seria uma ideologia e prescrição de uma mesma conduta e identidade em relação aos outros (a hipótese de uma tomada da "consciência" correta, por parte de todos, antes de uma qualquer situação de revolução), mas antes a reivindicação de um direito de existência de singularidades num dado meio/contexto/coletivo. Correndo o risco de realizar uma sobre-interpretação e uma passagem demasiado grande, diria que a posição expressada por MacKaye não é a de quem pretende propagar e exigir aos outros a sua adequação a uma dada identidade de forma a pertencer a um determinado meio/cena nem de forma a "agir corretamente", mas sim que essas práticas e esse meio - ainda que não colocando em causa as dimensões éticas-estéticas que o possam caracterizar -, torne possível a existência de diversas singularidades, bem como a possibilidade de essas existências poderem expressar e colocar em prática a sua potência. E isto não no sentido de uma identidade e/ou de uma consciência, a qual seria pretensamente mais superior e esclarecida, que se deveria atingir pela pertença a um projecto. A ética que MacKaye parece atribui ao punk, e que poderia ser extensível àquela que parece ser a sua concepção de uma vida e ação política, é uma de contínua experimentação e de crítica, algo que se depreende de uma afirmação em que coloca a "energia" (e aqui até poderíamos dar um sinto espinozista/deleuziano a este conceito) do punk não tanto no que seria a especificidade e/ou grandiosidade deste ou daquele indivíduo que em si conteria a verdade e/ou essência do punk, mas antes em todo um movimento que remete muito mais para aquilo que são as potencialidades que surgem quando se dá um encontro e partilha entre existências. Para um "rio", como MacKaye designa na seguinte frase: "It seems that they are talking about an energy that was contained within them - whereas I see an energy that is a constant ever-flowing river. And this river has always been there, and it always will be there. And what this river ultimately stands for is the free space in which unconventional, unorthodox, contesting, and radical ideas can be presentend.". Não se trata, como referem uns amigos, a defesa de uma identidade, daquilo que o "eu" poderia ser, mas antes um questionamento e uma politização da modalidade de uma singularidade, das formas e do como "eu sou o que sou".
A par deste reconhecimento relativamente ao direito de existência de qualquer singularidade (pelo menos a priori, antes de qualquer encontro e/ou confronto), o reconhecimento de que uma existência não se encontra dependente de um qualquer critério de eficácia ou grandiosidade relativamente às suas práticas e efeitos de forma a existir, haveria, ao mesmo tempo, uma outra dimensão que diz respeito a este "free space" - isto é, a uma possibilidade que é como a condição essencial para que tais ideias contestatárias possam se expressar e desenvolver, a possibilidade para que determinadas singularidades/existências e a sua potência possam ter lugar, reconhecendo-se que a potência é sempre dependente de uma relação com outros (e, como tal, implica sempre uma momento de subjetivação, de des-indentificação, de mudança).
Sendo que, como se torna óbvio, esta pluralidade de singularidades, mesmo que não implicando a adequação a uma identidade e/ou essência que se tomaria como superior e deveria homogeneizar um dado meio, também não implica a equivalência, em termos ético-políticos, de qualquer prática, forma de vida e concepção do mundo. E é justamente aqui que, de forma mais decisiva, a relação entre o plano individual e o plano coletivo se dá - ao mesmo tempo que se torna necessária uma ética e uma abertura que implique o reconhecimento de uma singularidade diferente da minha e a sua possibilidade de existência, também se torna necessária uma guerra em relação às éticas e singularidades que coloquem em causa a existência e potência minhas e de outros. Neste sentido, e aqui assumindo uma ideia de guerra que politiza qualquer existência e cada gesto, trata-se de um combate político não tanto pela virtude ou elevação deste ou daquele predicado, desta ou daquela identidade, mas antes da possibilidade de uma relação entre diferentes éticas e singularidades - de uma relação que, assume-se, nunca deixará de implicar uma ideia de conflito, de um conflito que é sempre ético-político, e que de passará, desde logo, pela definição das modalidades desse mesmo conflito e das concepções éticas em confronto.
Não se trata, assim, da defesa desta ou daquela identidade ou conduta em particular, nem de todas as identidades e condutas em geral. Mas antes do reconhecimento de um conflito entre modalidades da existência, entre diferentes singularidades e éticas - um conflito que, em última instância, não poderá não deixar de existir devido a essa mesma pluralidade. Sendo que, poder-se-ia dizer, o conflito ético-político mais importante passa pelo confronto com as práticas e concepções do mundo que colocam em causa a existência, singularidade e potência, enquanto tais e não dependentes deste ou daquele predicado - isto é, um conflito em relação tanto ao que visa o total anulamento da existência como em relação ao que visa a anulação da sua potência, sempre contingente (de onde se poderia incluir o capitalismo a outras formas de dominação e destruição sobre a vida, bem como, de forma associada, o conjunto de dispositivos e tecnologias de poder que atuam nesse sentido). 
Por fim, voltando ao straight edge ao mesmo tempo que arriscando bastante na especulação, poderíamos ver neste movimento uma modalidade, entre outras possíveis, do afirmado. O reconhecimento da dimensão política da vida em geral e da cada gesto em particular, num constante processo de devir, não separando e indo além da oposição entre pessoal e político, isto quando não caindo numa atitude moralista ou numa "mera" redução a um plano estético (mesmo que tal nunca seja inteiramente possível, pelas próprias relações que existem entre estética e ética), poder-se-ia dizer que o straight edge poderá representar uma conduta e a construção de uma ética em comum com claras implicações e preocupações políticas.