terça-feira, 1 de março de 2016

Notas para um debate sobre ação política e niilismo

O episódio recente relativo à Grécia, aquando do acordo assinado com a União Europeia para o prolongamento das políticas económicas anteriores, é um excelente exemplo de como, por um lado, a ação política à esquerda continua a ser maioritariamente pensada num quadro nacional e estatal, e, por outro, de como a análise de um suposto "sucesso ou insucesso" (tendencialmente avaliado de forma instrumental, na obtenção de um dado fim) de uma determinada ação política tende a incorporar e a reproduzir grelhas de análise e pressupostos não só liberais como marcados por um certo individualismo metodológico - desde uma visão meramente institucional da economia (em alguns casos, sem deixar de naturalizar a mesma na sua atual face capitalista) até a um quadro de racionalidade onde a intencionalidade de um dado sujeito é sobrevalorizada. A acusação de "traição" a Tsipras - ou, por extensão, a um conjunto de “dirigentes” referentes ao comité central do Syriza -, para além de ser proferida sem uma consideração do contexto e das relações de poder de onde emana a decisão final, não deixa de ser marcada por uma concepção que atribui uma determinada tarefa a um sujeito - neste caso, na figura de um suposto líder, mas que poderia ser estendida às variadas formas em que, implícita ou explicitamente, surge a figura de uma determinada vanguarda (mais ou menos individual, mais ou menos coletiva), à qual se parece atribuir uma certa exterioridade aos processos e lutas políticas, exterioridade essa que não só lhe poderia conferir uma certa objetividade como permitir uma decisão mais correta. Em qualquer dos casos, assume-se que "alguém" tem de "fazer alguma coisa", o dever de atuar sobre um determinado estado de coisas, num certo sentido e correspondendo a uma dada vontade, imprimindo um gesto que muitas vezes parece surgir enquanto do domínio do "evidente".
Ora, para além desta concepção, aqui explorada a partir deste caso particular e referente à ação de alguém que se tomaria como um qualquer "líder" ou vanguarda política, existe uma outra onde a exigência de "ação" se dissemina e já não se encontra presa a esta reivindicação individual ou de vanguarda, mas que, no entanto, não deixa de exigir que cada um ou que cada coletivo "atue" e se mova num determinado sentido, ou, pelo menos, que "faça algo". Trata-se de uma concepção e de um discurso que, à "esquerda", encontram expressão em vários momentos e contextos, atravessando vários movimentos e subjetividades. Da participação num partido (com os mais diferentes modelos e estruturas de organização interna), num sindicato, num coletivo e/ou numa associação (cultural ou não), é recorrente o apelo à necessidade de colocar em prática uma diversidade de empreendimentos e vontades: ora uma constante prática de "mobilização e consciencialização" de outros (que se tomam como menos mobilizados e/ou conscientes em relação ao seu redor), da tentativa de conferir visibilidade a determinados assuntos ou causas, da ida a diversas manifestações, ou, em último lugar, o simples apelo ao voto. A não participação em pelo menos uma destas vertentes, e a não apresentação de "resultados concretos consequentes", poderão abrir a porta a diversas qualificações, entre elas, a de niilismo.
Antes de avançar para a exploração de tal qualificação, importa apenas sintetizar a crítica que se pretende apontar às duas concepções de política apresentadas, assumindo que, apesar das suas diferenças, existe algo de comum às duas. Em qualquer uma das concepções, não se está longe de uma visão da política como sendo (ou “devendo ser") realizada por um sujeito racional, consciente de si, devedor de uma atenção e antecipação relativamente aos efeitos das suas ações, e responsável por empreender uma ação política consequente e capaz de produzir resultados visíveis, mais ou menos imediatos (quando não a mudança de uma lei, a visibilidade de uma dada questão). Trata-se de uma concepção que é observável tanto em contextos de uma ação que se supõe determinada por uma "necessidade", como fruto de uma "vontade". Correndo o risco de ser provocatório: tal como ao empreendedor se exige um contínuo investimento no seu capital humano e na garantia das suas condições de vida (mesmo que não detenha a capacidade para tal, já que tal implica uma dimensão social que não controla), também ao “militante” se tende, várias vezes, a exigir uma “consciência correta”, uma “vontade correta”, uma “ação eficaz” em termos táticos e estratégicos para o atingir de um dado fim. O objetivo deste texto é o de questionar tais pressupostos relativamente às diferentes formas de ação política - em particular, na sua relação com o niilismo.

A posição que se explorar neste texto é aquela que qualifica enquanto niilista as posições e estratégias políticas que, à falta de uma melhor definição, poderiam ser categorizadas enquanto "imanentes". Isto é, aquelas que, sendo seguramente diversas e sem uma definição consensual, poderiam ser descritas como tendo como base uma concepção relacional e imanente do poder (nas suas diferentes formas), considerando não a existência de uma exterioridade em relação a ele e às suas diversas expressões, mas sim uma imanência do poder - onde existem diferentes relações de força, com situações de dominação mas também com possibilidades de resistência e de subjetivação. Para além de diferenças relativamente à compreensão dessa mesma imanências, as estratégias que poderão ser adotadas face a tal concepção são as mais diversas, sendo que algumas remetem para a exploração e criação de outras formas de vida, de outras relações consigo e com os outros, para a criação de "mundos". A inexistência de uma exterioridade efetiva em relação ao poder, e as possibilidades de dissenso que tal traz consigo, em cada gesto.
Antes de avançar, importa referir que tanto a acusação de niilismo como as concepções imanentes podem ser historicamente situadas no período referente ao pós-maio de 68, como resultado de um conjunto de transformações económicas e sociais mais vastas (da ascensão do neoliberalismo à reconfiguração do papel e funções do estado, e, de forma mais decisiva, uma progressiva expansão do capitalismo a todas as esferas da vida e da sociedade, tornando impossível a existência de um “fora”) ou a própria emergência de determinadas experiências políticas (com destaque para a autonomia operária, em Itália). Tanto de um lado como do outro, torna-se recorrente explicar a emergência de tais experiências e escolhas por estas posições a partir de um conjunto de “derrotas históricas” da área política identificada enquanto “esquerda” - derrotas essas particularmente associadas ao que seria uma menor expressão do “movimento operário” tal como classicamente entendido (desde logo, a sua centralidade e universalidade enquanto sujeito histórico, com uma determinada tarefa a cumprir), ou à queda dos ditos regimes comunistas. Destas derrotas, seria a própria ideia e possibilidade de revolução e emancipação, de uma transformação qualitativa da histórica, que se teria tornado impossível. Emergiria tanto a impossibilidade de “superação do atual estado de coisas”, como um desencantamento com o mundo e uma frustração com a atividade militante, a qual se veria reduzida a uma auto-referencialidade, onde a ética e a estética substituiriam a ação política, a esfera individual e particular ganhariam predominância face um pensamento mais coletivo e universal (sendo que muitas das críticas a tal fenómeno não deixam de se encontrar presas a uma dicotomia entre estas esferas e planos). No entanto, em tais debates, a ideia de niilismo tende a surgir como uma categoria de definição imprecisa, ainda que com o poder de, com a sua mera invocação, catalogar de forma depreciativa uma determinada posição. Mesmo sem querer fazer uso de argumentos de autoridade nem procurar estabelecer aquela que seria a definição correta do conceito, importa explorar algumas perspetivas sobre o mesmo.
Num texto recente, “O Avesso do Niilismo”, Peter Pál Pelbart aborda este tema a partir do pensamento de vários autores. Sobre o significado do conceito em Nietzsche, afirma a existência de um duplo movimento no seu pensamento: um em que o niilismo seria “expressão de um decréscimo da força criadora”, e um outro em que o niilismo seria “sinal de um aumento na força de criar, de querer, a tal ponto que já não são necessárias as interpretações de conjunto que davam um sentido global à existência”. Ora, se a reflexão de Nietzsche tinha como alvo a “morte de Deus” e o efeito da cultura e religião cristã no Ocidente, poderíamos - não sem algum risco -, atualizar essa mesma reflexão relativamente a outras entidades que adquirem formas transcendentes e ao mesmo tempo procuram conferir um “sentido global à existência”: o Estado, o Partido, e, inclusive, a própria ideia de Sujeito. Para além de uma atitude de descrença motivada pela ausência de sentido, o niilismo também poderia, assim, ser definido enquanto a tentativa de assegurar as condições de existência a partir de instâncias exteriores à própria vida, algo que não deixaria de ter como efeito a redução da potencialidade da mesma. Explorando um pouco mais esta ideia, e já introduzindo algumas questões a serem exploradas mais à frente, poder-se-ia afirmar que a descrença e recusa em relação à transcendência não deixa de se relacionar com um gesto que pretende afirmar uma potência - uma potência que poderia surgir precisamente após a negação de determinadas formas de transcendência, isto através da tentativa de criar algo de forma imanente à própria vida e já não de forma exterior a ela, sem que tal implique uma redução da existência ou uma dependência em relação a algo que lhe é exterior.
Também partindo do pensamento de Nietzsche, Simon Critchley apresenta uma interpretação do niilismo no mundo contemporâneo - categorizado por este enquanto niilista. Fazendo referência àquela que seria uma das características do niilismo, a “crença na impossibilidade de encontrar sentido neste mundo, tomado como destituído de sentido”, Critchley afirma que a possibilidade de ultrapassar tal situação passa pela consideração da não-existência de um sentido transcendental e capaz de a tudo conferir sentido e segurança, da inexistência de um sentido que seria de certa forma anterior e exterior ao próprio mundo ao mesmo tempo que organizador do mesmo. Ao invés, e num movimento igualmente explorado por outros autores e experiências políticas, seria de avançar uma concepção que, mesmo que partindo do princípio da inexistência de um sentido escondido no mundo que deveria ser revelado, procure construir um outro sentido, de forma ética a partir do quotidiano e imanente à vida, implicando uma construção individual e coletiva que é sempre contingente e finita (e já não passível de deter um carácter transcendente, universal ou absoluto). A visão sobre a ética presente em Critchley permiti-nos realizar uma ponte entre o seu pensamento e o de Agamben sobre esta mesma questão. Num capítulo sobre o tema, no livro “A comunidade que vem”, Agamben afirma que qualquer discurso sobre a ética deve partir da consideração da não existência de qualquer essência, vocação (histórica ou espiritual) ou destino (biológico) em relação ao “homem” – e é precisamente por essa razão que uma experiência ética se torna possível, pela não existência de um determinada essência, destino ou tarefa pre-determinada e que configurariam dessa forma o possível e as possibilidades de ação. Para Agamben, existe, contudo, “algo que o homem é e tem de ser”, e que se trata do “o simples facto da sua própria existência como possibilidade ou potência”.
O tema do niilismo é diversas vezes abordado por Agamben, categorizando as sociedades atuais enquanto sociedades onde a metafísica ocidental adquire uma expressão niilista. O niilismo é explorado de diversas formas e com várias referências na sua obra, mas, para efeitos deste texto, importa explorar a distinção que estabelece entre um niilismo imperfeito e um niilismo perfeito. O primeiro remete para a forma como, no atual estado de excepção, o qual é um paradigma das sociedades e do direito contemporâneo, a lei é destituída de conteúdo (sem uma clara demarcação entre o legal ou ilegal) mas mantêm o seu estatuto de validade (fazendo com que cada ação possa ser potencialmente ilegal; algo que também se relaciona com a produção da vida nua) e, desse modo, permite a reprodução e manutenção deste paradigma. Enquanto o niilismo perfeito (ou messiânico) seria aquele onde a lei não resiste enquanto válida para além do Nada que a caracteriza em termos de conteúdo, permite uma destituição do dispositivo que a torna válida e detentora de uma função de dominação. Também neste gesto ver-se-ia não a tentativa de, através da e na esfera da lei, agir politicamente no sentido de mudar um conteúdo concreto por um outro, mas antes profanar o próprio dispositivo que se mantêm válido apesar de não deter qualquer conteúdo – dispositivo esse usado pelo soberano.

Com esta revisitação do conceito de niilismo pretende-se salientar que o niilismo não reside apenas (ou necessariamente) nas formas de ação políticas mais associadas a tal categoria, mas que também se encontra em outras concepções, transcendentes (mas não só), e que remetem para uma redução e/ou anulação da própria vida - apesar dos seus possíveis efeitos imediatos e visíveis, uma ação política centrada na esfera institucional não deixa de correr o risco de contribuir para a redução de outras possibilidades (ainda que tal não seja algo de exclusivo nem de necessário em relação a tal esfera).
Além disso, o objetivo deste texto também passa pela possível abertura de um debate que explore uma visão da política associada às ideias de contingência e possibilidade, e como estando além de tensões e dicotomias como as de indivíduo e coletivo ou entre vontade e necessidade. Ao mesmo tempo, também se pretende um questionamento relativo ao conceito de niilismo e dos seus diferentes usos e efeitos no presente – considerando-se, desde logo, que algumas das “acusações” que qualificam uma determinada concepção política enquanto niilista não deixam, elas próprias, de ter como base pressupostos não só bastante discutíveis (como todos o poderão ser), como niilistas. Sendo que o objetivo desta exploração não é a da defesa desta ou daquela posição, não é a afirmação da existência de uma que seria tomada como mais “esclarecida” ou “superior” em relação outras concepções, nem a da formulação de fundações para uma política que se consideraria mais correta - antes, a apresentação de um conjunto de ideias que se pretendem discutir, de forma coletiva, com o objetivo de que daí se possa originar a reformulação das várias posições e ideias em causa.
Uma visão da política enquanto marcada por uma "absoluta contingência" permiti-nos, tal como refere Agamben, ir "para além de qualquer vontade ou necessidade". Não só a ação política não é passível de uma antecipação e cálculo que tudo possa identificar e organizar relativamente ao “real” e às necessidades que seriam de superar, como as possibilidades de concretizar uma dada intenção e/ou estratégia são sempre contingentes, atravessadas por relações de poder e conflitos, imersas no quotidiano e nas relações em que se realizam e de onde partem, (re)produzindo sentidos, subjetividades, possibilidades. Da mesma fora que não existe um fora em relação ao estado e ao capitalismo, não existe um fora em relação a esta imanência de conflitos e relações, sendo a política marcada pela contingência e pela materialidade de cada situação e não pela ação racional e consciente que um dado sujeito poderia conceber e imprimir. Como refere Agamben, as ideias de vontade e necessidade surgem como uma redução e como uma forma de evitar a própria ideia de potencialidade: ao invés do questionamento do que se pode ou não pode fazer ou ser, a nossa tradição ética ocupa-se com o que cada um quer (vontade) ou deve (necessidade) fazer ou ser, sendo a partir desta tradição que emergem grande parte das concepções e acusações morais relativamente às ações éticas e políticas de cada sujeito. Trata-se da redução e confusão entre potência e vontade, impotência e necessidade.
Recuperando algo já referido, a crítica de uma visão substancialista do sujeito e/ou de uma tarefa ou destino que o "homem" deveria cumprir não abre, assim, (necessariamente) espaço ao niilismo, mas sim à potencialidade da vida, ligada à contingência e à construção de uma ética comum. O que se defende é a exploração de uma concepção da política que não parta do princípio que um dado indivíduo detenha a responsabilidade de, por si só, transformar o mundo (concepção de onde emergem vários voluntarismos). Ao invés, a sua responsabilidade encontra-se a um nível ético-político, na forma como se abre e liga ao mundo, a uma dada situação comum - e de, assim, contribuir, com outros, para a criação de outros mundos. Tal não se trata de um niilismo, pois implica a relação (ética) com o aqui e agora, com as possibilidades de relações consigo e com outros, com o mundo. Trata-se, assim, de uma abertura à contingência que implica uma ética, uma determinada relação e abertura com o "aqui e agora" (colocando em causa o presente mas sem fazê-lo depender de um futuro pré-determinado e que se afiguraria como escatológico), realizada em comum. A ideia de revolução e do comunismo como processo, sem fases nem mediações – a comunização, a comuna.
Ainda sobre esta questão, Marcello Tari, no seu livro sobre a autonomia operária, refere algo de semelhante quando afirma que os militantes que desejavam ligar-se e confrontar-se com o ciclo de lutas e com a especificidade da autonomia nos anos 70 deveriam, em primeiro lugar, realizar um “trabalho de si sobre si” (no sentido dado por Foucault), o qual implicava “uma autêntica conversão, antes de poderem participar e compreender aquilo que sucedia”. Importa salientar que tal “trabalho” não remete para um processo meramente individual nem para o atingir de uma posição mais "esclarecida", mas para algo que vai para além da dicotomia entre indivíduo e coletivo, fazendo referência a um processo realizado pelo indivíduo na sua relação consigo e com os outros, a um conjunto de operações sobre a sua forma de vida com vista à sua transformação. Tal gesto, bem como os efeitos e relações que produzem, implicam, como referem vários amigos, a criação de uma linguagem comum, de outras formas de vida, de uma atenção e visão partilhada da situação, de uma politização da existência que não deixa de passar pela consideração e produção de outros gestos, outras formas e relações de cuidado, outros usos, outros afetos e outra educação sentimental. A problematização de Agamben relativa às formas-de-vida é paradigmática desta concepção, remetendo para uma vida que nunca poderá ser separada da sua forma, uma vida associada a uma dimensão de possibilidade e potencialidade, em que “cada forma, ato ou processo da vida nunca são meros factos, mas sempre e acima de tudo possibilidades de vida, sempre e acima de tudo potencialidade.”. Trata-se de um exercício que implica uma alteração ontológica, já não uma ontologia de substância referente ao sujeito, mas uma ontologia da modalidade, uma ontologia do como – em que a questão já não é mais “o que” é que eu sou, mas antes “como” é “que eu sou o que sou” (estabelecendo-se, assim, uma ligação entre ontologia e ética).
Se o estado e capitalismo tendem a entrar em cada vez mais dimensões da vida e da sociedade (do desejo ao cuidado), para a sua dominação e produção (de valor, de subjetividades, de populações, etc), também passam necessariamente por este plano processos de dessubjetivação ético-política, bem como a emergência de conceitos e estratégias imanentes às formas e estratégias de ação que se adotem. As atuais relações e modos de produção e as formas de organização política não serão destituídas sem que, ao mesmo tempo, se dê uma transformação e combate das subjetividades e relações afetivas que as tornam possíveis. Sendo que também seria através desta negatividade que a própria questão do niilismo se reabre e surge enquanto tensão por resolver – tanto no sentido da sua possível reconfiguração, como da sua dissolução a um nível metafísico e enquanto dispositivo de poder nas sociedades biopolíticas.