quinta-feira, 29 de outubro de 2015

do possível num contexto de um "governo de esquerda"

Um "governo de esquerda" não representa, pelo menos por si só, a possibilidade de uma alteração significativa do estado de coisas existentes. O plano ontológico onde se dão um conjunto de (re)produções de determinadas práticas e relações sociais, de determinadas relações com o mundo e consigo mesmo, não é passível de ser transformado através de um apelo à transcendência - venha ela de Deus, do Partido ou do Sujeito -, mas apenas através de uma lógica imanente a essa mesma situação. E isto mesmo que possam ser tomadas algumas medidas no sentido de uma melhoria a curto prazo das condições de vida da população em geral - sejam elas ligadas à precariedade e à legislação laboral, relativamente a temas como a saúde, educação e habitação, ou o acesso a direitos como a adopção por casais do mesmo sexo, o reverter das alterações da lei sobre o aborto, ou a despatologizacao de identidades trans*. O espaço do Estado, e em particular quando restrito à escala nacional e a um conjunto de funções restritos, não é um espaço de intervenção capaz de permitir mudanças significativas.
Além disso, o atual debate sobre a possibilidade de um governo de esquerda não tem apenas como mérito o tornar mais claro o regime pós-democrático em que nos encontramos - de aspetos mais estruturais e que se acentuaram com a crise e o regime de excepção que se torna a norma e é usado como dispositivo de governo, a limitação do espaço do possível ou a estruturação e redução do debate no espaço público. Algo que é traduzível tanto na observação de quais são os sujeitos com direito a desempenhar determinadas funções, na limitação do debate político a dimensões apresentadas como "meramente técnicas" e restritas a "especialistas", ou às opiniões de um conjunto de "comentadores" que se repetem entre si e são incapazes de sair de uma concepção elitista de democracia. 
Sendo que, e isto é necessário sublinhar, esta incapacidade de transformação e intervenção até do Estado não é tanto devida a uma qualquer falta de vontade e/ou capacidade de quem possa exercer essa função, mas sim pelo facto de essa mesma função - pelo menos no seu atual contexto e segundo a forma que adopta - exigir a adopção de um conjunto de procedimentos que impedem, por si só, a possibilidade de "outra coisa". Desde a lógica de delegação e representação à reprodução da divisão entre governantes e governados que subjaz ao modelo que estrutura este sistema de governo, a aspetos mais recentes como uma contínua perda de soberania à escala nacional (e não só) e de atuação decisiva em determinados setores da economia (ainda que continue a ser relevante no sentido de uma determinada (re)produção biopolítica de subjetividades e de intervenção para as criações de possibilidade da atividade económica e das lógicas de competitividade que a caracterizam), a todo um outro conjunto de constrangimentos e estruturas mais vastas que tornam essa mesma escala e esfera do Estado um agente com um poder de determinação reduzido. Assim, e mais do que uma qualquer capitulação a outros interesses ou políticas, são as próprias condições de possibilidade de uma transformação através do Estado que se tornam cada vez mais impossíveis - se é que alguma vez o chegarem a ser. Algo que não só não deve ser visto como um problema em si mesmo, como também não implica necessariamente dizer que este é indiferente e que indiferente também seria quem seria responsável pela sua gestão.

Mas, mais interessante do que o debate relativo ao Estado, é aquele que o coloca em relação - senão mesmo em confronto -, com todo um conjunto de movimentos políticos, de sensibilidades e estratégias diversas. Neste sentido, poder-se-ia, de forma necessariamente redutora, dividir essa análise em dois grandes planos: um focado nas potencialidades que um governo de esquerda poderia permitir a outras subjetividades políticas - mesmo aquelas que se encontrariam em confronto direto com a própria ideia de governo e de estado -, e um outro mais focado no seu oposto. Sendo que, talvez, o mais interessante seja a análise das tensões e contradições entre estes planos, as quais se perspetivam adensar a curto prazo caso se confirme a possibilidade de um governo de esquerda (ou caso a sua não concretização espelhe ainda mais o já referido contexto pós-democrático e de excepção no qual nos encontramos).
A possível mudança de governo e o contexto e a forma como tal sucederá, implica, desde logo, o questionamento sobre se o impasse vivido nos últimos 2-3 anos ao nível de um refluxo dos movimentos sociais em Portugal (mas também na Europa de forma geral) poderá ser de algo forma revertido. Isto é, se se tornará possível, ou não, o adensar, através de um novo contexto político, de um conjunto de práticas em que se intensifique a conflitualidade social, isto em várias formas - seja ao nível de exemplos mais "clássicos" como é o caso de manifestações ou de greves, ou, e talvez de forma mais decisiva para uma acção política imanente, a multiplicação de um conjunto de experiências que tenha como horizonte o quotidiano e a vida - sem opôr estas dimensões à política e à ética -, o que poderá ocorrer através de experiências tão variadas como cantinas cooperativas, espaços de auto-gestão afetos aos mais diversos temas, sessões de debate, espaços de encontro, etc. 
As possibilidades que aqui são identificadas poderiam ser potenciadas por um suposto contexto político mais "progressista" e em que todo um conjunto de contradições se tornasse mais visível - algo referente à 1ª hipótese, de carácter emancipatório. Ou, pelo contrário, esse mesmo contexto político poderia não ser desenvolver um conjunto de mecanismos e dispositivos que procurassem "impedir" o conflito social - algo que poderá ser feito inclusivamente pela satisfação imediata de um conjunto de necessidades e/ou provisão de um conjunto de serviços, não deixando de o realizar em conjugação com a divulgação e criação de expetativas futuras no mesmo sentido -, ou pela possível institucionalização e controlo de movimentos sociais, protestos e reivindicações autónomas e externas ao Estado.
A única coisa que se poderá esperar é uma tensão entre estas duas vertentes, com diferentes temporalidades, reportórios e sentidos. Fora disso, é arriscado - para não dizer mesmo absurdo -, perspetivar qualquer certeza em relação ao futuro. Sendo o espaço da política marcado pela contingência, pouco mais existe a fazer para além de um contínuo trabalho de (re)definição estratégica, bem como pela tentativa de intervenção coletivo no aqui e agora, no desenvolvimento de formas-de-vida e relações com o mundo que procurem ser o mais próximos daquilo que se procure lutar.

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