segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Poder e Tempo do Fim: notas em torno de Mad Max - Fury Road


 (Nota: texto inicialmente publicado em stasis https://www.facebook.com/stasisclub/)

Tendo como ponto de partida o filme Mad Max – Fury Road, o objetivo deste texto passa por explorar alguns temas que nele se encontram, ou a partir deste possam ser invocados. Correndo o risco de realizar uma “sobre-interpretação”, ou de projectar no filme o que nele não existe, pretende-se discutir algumas dinâmicas e lógicas do poder contemporâneo, bem como algumas possíveis formas de resistência e linhas de fuga ao mesmo – da soberania e da logística, passando pela relação entre corpo e valor, papéis de género e masculinidades, até terminar com uma reflexão mais longa sobre possíveis leituras messiânicas presentes no filme, em ligação com os temas da catástrofe e do apocalipse.

A) Soberania e teologia
Um dos principais temas do filme passa pela Soberania, em particular na sua articulação com dimensões teológicas. Desde logo, a personagem de Immortan Joe (o soberano) articula, em si, o poder divino e o poder profano devido a uma posição que remete não só para um centro de decisão e governo, mas que invoca um conjunto de práticas e significados de ordem teológica. Trata-se de uma questão observável no filme através de várias exemplos, como sejam a figura do Uno, que concentra em si o poder e a possibilidade de redenção, ou a diversidade de práticas e rituais que contribuem para uma legitimação e reprodução desse mesmo poder.
Numa das cenas iniciais do filme, na qual surge Immortan Joe, esta articulação é particularmente visível (ainda que a mesma também permita sinalizar a fragilidade e “orquestração” em que se fundamenta o seu poder, sustentado num conjunto de rituais que contribuem para que este exerça a sua “função de comando” apesar do seu “vazio”). Na cena em causa, encontra-se um Immortan Joe fisicamente debilitado, provavelmente doente e com pouco tempo de vida, dependente de várias pessoas para tomar conta de si e para o ajudarem a cumprir este ritual de demonstração do poder. Este surge no alto de uma montanha, com um conjunto de adereços simbólicos que procuram “demonstram a sua força” e singularidade (em particular, enquanto auto-proclamado “redentor”, algo que é anunciado por si aos seus “súbditos”).
Esta dimensão redentora de Immortan Joe é retomada e explorada posteriormente através da referência aos WarBoys, os quais acreditam que ele seria capaz de os guiar e levar da situação pós-apocalíptica em que se encontram para um lugar celeste que povoa o seu imaginário, Valhalla - sendo que, através de tal promessa, o Soberano consegue não só manter uma distinção que funda e legitima a sua posição, como também lhe permite incentivar a acção dos WarBoys, os quais lutam por ele na esperança de atingir a sua preferência e atingir a redenção.
De forma mais “material”, este poder também se funda no controlo que Immortan Joe detém sobre a água, aproveitando o momento em que se “mostra” à população da cidade para, de forma breve e discricionária, abrir as comportas e dar um pouco de água à população que é mantida à sede e numa situação de escassez quando existem recursos e meios suficientes para fazer face a tal cenário – no momento em que ele fecha as comportas, chega mesmo a avisar o seu “povo” para que não se deixe “viciar” em água, pois esta iria “controlá-los”. Neste sentido, existe uma ligação entre uma dimensão teológica e uma material que se manifesta pelo controlo da água e do que esta lhe possibilita, bem como pelo controlo de outros recursos e infraestruturas de que dispõe (algo a ser explorado à frente).
A relação entre soberania e “vida nua” também se encontra presente no filme. Esta é representada de várias formas, sejo num sentido mais restritamente biológico (enquanto zoe) como sucede através da situação dos WarBoys (também designados de “meia vida”, numa estado entre a vida e a morte apesar de constituir grande parte do exército do Soberano), das “5 esposas” e das “mães de leite” (cuja existência é reduzida a uma dimensão biológica, determinadora da sua “função” e papel na sociedade em questão), da figura de Max (tanto enquanto alguém exterior exterior do sistema político em causa, como enquanto mera redução a “bolsa de sangue”, desta forma usado para garantir a existência dos WarBoys), seja da própria população (afastada da política e alvo do Soberano). Para Agamben, a vida nua constitui o “primeiro referente e fundação da política” que marca a história da política ocidental, naquilo que é um processo de “inclusão por exclusão” em que a vida (a qual não é em si mesma política,pelo menos na sua dimensão biológica, enquanto zoe), se vê, ao mesmo tempo, excluída da vida política e incluída e capturada pelos dispositivos de poder através deste processo – sendo esta razão que faz com que, para Agamben, a política ocidental adquira uma forma biopolítica. Neste sentido, e como fundação e garantia de reprodução do poder soberano, tal forma de poder deva ter como principal função a produção de vida nua - não sendo possível pensar outra dimensão da vida, de uma vida ética e política, enquanto não se desativar o dispositivo que produz e captura a vida nua.
Contudo, e tal como se explorará posteriormente, esta condição de “vida nua” não implica necessariamente uma situação de impotência política, mas antes obriga a uma experimentação de outras possibilidades. Tal poderia ser observável no caso das “5 esposas”, as quais, através da sua fuga e da recusa do papel que lhes é atribuído, colocam em causa as fundações em que sustenta o poder do Soberano. Ou, em particular (ainda que correndo alguns riscos de romantização), a figura quase anti-heróica de Max (também ele numa condição de vida nua, de homo sacer), o qual, face à sua situação na comunidade política em causa e às circunstâncias em que se encontra (no confronto entre a sua vida e a soberania), não deixa de apresentar um potencial messiânico para a construção de outros mundos e formas de vida.
Por último, naquele que é um dos últimos momentos do filme, em que o corpo de Immortan Joe é revelado ao “povo”, deparamo-nos não apenas com uma situação em que um possível novo Soberano mostra o corpo do anterior, mas acima de tudo a demonstração de que, ao contrário do que se fazia crer de forma a que Immortan Joe mantivesse o seu poder, este não seria um ser imortal e, logo, não seria Deus. Com tal gesto, é o próprio mito da transcendência e de uma figura – secularizada ou não - do Soberano que se ataca, tornando possível uma situação onde já não exista nem soberano nem governo. Tanto o medo imediatamente sentido por um dos filhos de Immortan Joe, observando esta cena no “alto”, como o “ataque” rapidamente feito ao cadáver do Soberano pela população, demonstra isso mesmo. Trata-se não tanto de um ódio ao anterior soberano e ao regime e situação que representava, mas sim a possibilidade de algo “novo” – mesmo que contingente e aberto ao conflito, sem uma necessária garantia, pelo menos à partida, de uma alteração estrutural das relações de poder em causa.

B) Logística
Outro dos temas observáveis no filme concerne o debate em torno da logística. Até como já salientado, uma das formas através das quais o Soberano mantem a sua posição passa pelo controlo que detém da organização logística da Cidade, isto através do acesso e gestão que faz da água, da infraestruturação que mantêm uma divisão entre o “alto” da Cidadela e a restante área onde se encontra a população, do controlo e uso de infraestruturas para a agricultura e outras formas de produção, ou a posse dos veículos que servem simultaneamente como meio de transporte (de pessoas e mercadorias, fundamental para trocas de produtos com outras cidades) e para fins militares.
O controlo e uso de tais infraestruturas configura um determinado mundo e torna possível determinadas formas de vida, sendo fundamental para a (re)produção do “estado de coisas”. A infraestrutura é um meio através do qual se cria uma determinada relação com o mundo e determinadas existências e formas de vida, isto através da criação e estruturação do quotidiano, do ambiente construído, dos movimentos e fluxos, das relações sociais.
Como sucede na cena central do filme, a transformação das relações de poder e a possibilidade de atingir um outro mundo implica que a configuração técnica e material deste não esteja sujeita ao governo de Um, mas sim a um uso comum – sendo que o confronto fundamental no filme incide precisamente sobre este ponto. Sendo que, para tal, não deixou de ser necessário um conhecimento do funcionamento da “máquina”, algo detido por Furiosa e Nux (do funcionamento da Máquina de Guerra - bloqueada e explorada para outros usos – à organização da cidade), bem como por Max e pelas “5 esposas” (sabendo da existência de água e do que tal permite na economia e relações de poder na cidade).
Para que tal tenha sido possível, foi ainda necessário não partir de uma concepção que se assumia enquanto “exterior” em relação à técnica e aos dispositivos que configuram o mundo em causa, mas antes mapear e procurar os pontos de fuga possíveis para estabelecer outras formas de vida – algo que passou, desde logo, pelo bloqueio e interrupção dos fluxos que estruturavam o mundo em causa, dependente da circulação de produtos entre cidades, isto através do uso da “máquina de guerra” para a fuga e combate a tal situação, emergindo com tal gesto outras possibilidades.

C) Corpo e Valor
Mesmo que faça referência a situações e relações constituintes do capitalismo, provavelmente não se poderá afirmar que o filme procura explorar e realizar uma crítica do funcionamento do mesmo. No máximo poder-se-ia afirmar, e mesmo assim de forma algo especulativa, que a situação em que se encontram não deixa de ser resultado de tal sistema. Contudo, não deixam de existir elementos que remetem para um imaginário e modo de funcionamento capitalista.
Em particular, e num sentido que tem vindo a ser explorado por diferentes perspetivas no que à questão do Valor diz respeito, é de destacar a centralidade conferida ao corpo e à esfera da vida neste filme. Esta questão é particularmente visível, e também genderizada, no caso de quem ocupa as funções de “5 esposas” e “mães de leite” em tal sociedade. Isto tanto no sentido de uma (re)produção de “força de trabalho” - como salientam algumas perspetivas feministas também focadas numa análise e crítica do capitalismo -, bem como enquanto “produtos/mercadorias” numa concepção de “economia” e das suas práticas e relações num sentido mais lato.
Também é dado destaque, mesmo que de forma figurada e no que seria uma referência a um aumento de uma “capacidade de agir” (e não de produção de mais-valia), ao caso dos WarBoys. Desde logo, a sua referência enquanto “meias-vida” (incapazes de se valorizarem e reproduzirem por si só, e apenas “produtores” de destruição) e a sua dependência dos “bolsas de sangue” (exemplificado pela personagem de Max, cujo seu “valor” é determinado pela sua biologia, a qual aumenta no caso de se tratar de um dador universal) permite uma possível leitura da relação entre trabalho morto e trabalho vivo - relação essa que conduziria a uma capacidade de (re)produção de uma mais-valia ao nível da luta e da reprodução de relações de poder (assumindo-se que um determinado modelo económico pressupõe um determinado estado de coisas).
Sendo que esta relação, entre trabalho vivo e trabalho morto como aqui exemplificados, também se insere num dispositivo específico - o qual, de uma forma semelhante ao que sucede no capitalismo em relação ao crédito ou à dívida, não deixa de implicar uma "promessa" que atua no sentido de intensificar um determinado trabalho sobre si mesmo, que neste caso passa pela possibilidade de atingir uma redenção e chegar Valalha, no caso de se realizar corretamente um determinado trabalho.
Ou seja, trata-se de uma representação que remete para a produção de valor através das diferentes esferas e potência da vida, para além do seu papel na reprodução de uma determinada situação de relações de poder. Neste sentido, deparamo-nos com uma situação em que as pessoas não deixam de ser vistas enquanto "coisas" (ou mercadorias) e as suas relações mediadas por mecanismos que (re)produzem uma determinada ordem.

D) Papéis de Género e Masculinidades Hegemónicas
Aquando do seu lançamento, o filme Mad Max – Fury Road foi alvo de disputa no que concerne à sua relação com o feminismo – destacando-se uma polémica com um grupo denominado de MRAs (Men's Rights Activists), os quais acusaram o filme de “ideologia feminista” e apelaram a um boicote ao filme. Num sentido político bem mais interessante, também não faltaram leituras feministas do filme, ainda que geralmente focadas no número e protagonismo conferido a mulheres enquanto protagonistas no filme, algo que, por si só, serviu para justificar a classificação de filme feminista por parte de tais análises. Não sendo de descurar tal ponto – até para efeitos de visibilidade e representatividade -, neste texto pretende-se explorar outros temas presentes no filme na sua relação com o feminismo.
Um desses temas diz respeito à crítica da visão e prática que tende a tomar as mulheres enquanto objetos (com papéis sociais definidos e estruturados segundo uma lógica patriarcal, exemplificados no filme através das figuras das “5 esposas” e das “mães de leite”) – sendo que, ao mesmo tempo, existe uma tentativa de apresentar, através do desenvolvimento do filme e da sua trama, exemplos que salientem a agência das mulheres, não as reduzindo a um papel meramente passivo.
Tal é particularmente exemplificado pela situação que despoleta a narrativa do filme, com a fuga das “5 esposas”. Esta fuga tem como razão principal a sua recusa em serem tratadas como “coisas” (como referiram as próprias, e deixaram escrito Cidadela). Esta fuga pode ainda ser tomada como um processo, ao longo do qual diversos momentos e fases levam a uma “tomada de consciência” da sua situação, bem como por uma passagem de uma defesa abstrata e quase “idealista” da paz para uma consideração e defesa da necessidade do conflito para a construção de outro mundo e formas de vida. Neste sentido, a sua fuga não segue o guião de uma travessia que, mais ou menos épica, seria conduzida única e exclusivamente por Furiosa (enquanto pretensa vanguarda e líder feminista) e por quem mais detivesse uma suposta maior capacidade inicial para a luta em questão – ao invés, a sucessão de experiências que as envolvem directamente no sentido de garantirem a sua existência e a possibilidade de outras formas de vida, é determinante para tal processo. O contato com as Vuvalini, um momento marcado por uma ambiguidade de emoções devido à mistura entra a alegria do reencontro e afinidade ético-político e a tristeza pelas notícias relativas à história e situação atual destas, poderá ser visto como uma experiência decisiva em tal processo de transformação – em particular, na consideração da materialidade e imanência da luta que enfrentam. Isto pela forma como constituem um exemplo de resistência diária (sem glorificação acrítica da mesma), demonstrada pela sua sobrevivência, sozinhas, num ambiente pós-apocalíptico como aquele em que se encontravam. Uma sobrevivência que, para além de um apoio mútuo e necessidade de criação de comunidade (algo que, contudo, poderá como que assumir uma equivalência “natural” entre cuidado e o que seria uma condição feminina), não deixou de parte o uso da violência caso tal se revelasse necessário (não caindo, assim, numa visão ingénua que advogaria o pacifismo e o aliaria a uma posição moralmente superior, em contraste com aquela tomada pelos seus inimigos). Durante este processo, é, assim, de salientar a mudança de uma concepção em relação à guerra por parte das “5 esposas”, passando de uma posição idealista e pacifista plasmada numa das frases que deixaram aquando da sua fuga – “Os nossos filhos não serão senhores da guerra” -, para uma outra onde compreendem a não existência de uma exterioridade em relação ao conflito e ao que tal implica.
Ainda sobre a crítica à forma como as mulheres são tratadas enquanto objetos e detêm papéis de género tão definidos, o conjunto de atividades desempenhadas por mulheres no filme e os papéis que lhes são atribuídos (visíveis nas designações de “5 esposas” e “mães de leite”) não só sinalizam a forma como determinadas funções associadas à reprodução são atribuídas ao género feminino, mas também demonstram a sua importância para a reprodução das relações de poder, isto tanto a um nível simbólico (devido aos papéis de género invocados e os significados dos mesmos) como a um nível económico (dada a importância dessas atividades para a reprodução da “força de trabalho” e para a manutenção de uma determinada “normalidade social e económica” com vista à produção de mercadorias e valor). Ainda sobre este ponto, o qual se relaciona com a relação entre corpo e valor anteriormente abordada, torna-se visível a forma como a mulher é tomado como um mero objeto e enquanto propriedade privada de alguém – desde logo, do soberano.
Além disso, a personagem de Furiosa, protagonista do filme – a qual não está imune a uma certa idealização na sua construção -, representa uma desconstrução do papeis e ideais tradicionais de feminilidade, apresentando uma outra estética e ética como possível (entre várias possíveis). Isto desde a dimensão agencial e as capacidades de que faz uso (tradicionalmente associadas a um papel masculino), como pela própria referência a uma possível condição cyborg (Haraway) ou “pós-humana”.
Outro tema central filme passa pela críticas das concepções tradicionais e hegemónicas de masculinidade. Em particular, várias vezes surge uma ligação entre masculinidade (na sua dimensão hegemónica) e a responsabilidade pela "destruição do mundo" – algo que surge de forma explícita duas vezes, uma primeira enquanto pergunta retórica, deixada na sala onde estavam as “5 esposas” e direcionada a Immortan Joe, e posteriormente voltada a um WarBoy.
A tensão entre as “visões” e as memórias que perseguem Max, e, por outro lado, o exemplo de relações que se observa entre Furiosa e as “5 esposas” e entre estas e as Valvuni, remete para uma tensão entre duas formas de relação social diferentes e genderizadas. Isto porque, enquanto a personagem de Max se encontra presa a uma visão de cuidado (ou responsabilidade) que se baseia numa figura tutelar e patriarcal como garante da sobrevivência da sua “família” (reproduzindo assim lógicas patriarcais, em que alguém – o homem - deteria essa responsabilidade, com ideais tanto de culpa como de carácter redentor associados a tal função); a outra visão de cuidado, inspirada numa ética feminista que procurará servir como base para a construção de comunidade na Cidadela, não parte de uma dependência em relação a uma só figura/pessoa e a papéis de género socialmente definidos e diferenciados, mas antes a uma acção coletiva que procura ir para além de tais divisões e hierarquias.
Ainda neste seguimento, é de notar uma situação de “separação” e isolamento que marca a personagem de Max, potencialmente expansível para outras figuras. Na reflexão inicial de Max, a qual inicia o filme, este refere uma deterioração individual associada à deterioração das condições de vida na terra, assumindo que tal o faz colocar em causa a sua própria saúde mental – em particular, devido às suas memórias, as quais o “perseguem”, dizendo-se “assombrado por aqueles que não conseguiu proteger”, perseguido pelos “mortos e pelos vivos”, vivendo uma existência reduzida a um “instinto de sobrevivência” num meio hostil. Esta é uma situação que acompanha Max ao longo do filme, marcada por uma tensão entre o seu “isolamento” e a tentativa de atingir uma situação de “redenção” e pertença a  uma comunidade, um objetivo que não deixa de emergir e até se tornar mais palpável a partir das relações que vai criando ao longo do filme, em particular com a cumplicidade e afetividade que acaba por construir com Furiosa. Em parte, é também isso que Max procura quando, na cena central do filme, ao invés de seguir isolado o seu caminho, volta atrás e apresenta o plano de conquistar a Cidadela, algo que seria feito de forma coletiva e permitiria a possibilidade de uma redenção e outras relações e formas de vida – isto mesmo que o objetivo de ir além do seu isolamento e nomadismo possa ser re-questionado no final do filme.
Também o percurso de Nux, o WarBoy que acaba por acompanhar e ajudar o grupo na sua fuga, é interessante neste processo de desconstrução da sua masculinidade e apresenta algumas semelhanças com o de Max. Sendo que, neste caso, é de destacar o momento em que este se confronta com o seu “falhanço” aos olhos de Immortan Joe, tendo sido incapaz de cumprir a sua missão, algo que o faz sentir culpado e julgar que, ao contrário do que pensava e lhe havia sido prometido, afinal já não seria um dos escolhidos a entrar no paraíso (Valhalla). Esta concepção é alterada quando, nesse momento, é apoiado por uma das “5 esposas” que o encontra numa situação de vulnerabilidade, conseguindo que este que os ideias de masculinidade e objetivos transcendência que sempre conheceu, em favor de uma concepção que privilegie os momentos e relações que se podem criar no aqui e agora, a partir de uma outra ética, de influência feminista.
No fundo, salienta-se que qualquer tentativa de construção de comunidade teria de ser diferente das formas de organização que atualmente se conhecem e enfrentam, uma comunidade que possibilitasse outras formas de relação e a desconstrução das formas de masculinidade hegemónicas vigentes no contexto em que se encontram. Ou seja, trata-se do reconhecimento da necessidade de uma alteração de relações sociais e de subjetividades, tanto como garantia de sobrevivência num contexto apocalíptico, como para a possibilidade de redenção e transformação das relações de poder.

E) Tempo que Resta e Potência Destituinte
E.1 Catástrofe e Apocalipse
Como se tornou claro ao longo do texto, o filme Mad Max retrata uma situação pós-apocalíptica. Trata-se de um tema que tem sido alvo de várias discussões, em particular a partir de algumas reflexões e discursos recentes em torno do antropoceno. Os discursos e as perspetivas são as mais variadas, mas, para efeitos deste texto, salientamos a ideia da “catástrofe” como algo que já aconteceu e com a qual temos de lidar a vários níveis (de ambientais a metafísicas), assumindo-se, assim, a premissa de que a catástrofe e o conflito/guerra “já cá está”, ao mesmo tempo que tal não implica a procura de uma qualquer escatologia, mas sim de um antagonismo e conflito imanente e contingente.
Neste sentido, para além de uma referência a tal situação, aquilo que se torna particularmente interessante em filmes como Mad Max é a demonstração de que, apesar da materialidade de tal contexto, as possibilidades políticas não se esgotam por completo e mantem-se presente uma ideia de contingência, da possibilidade do “novo”. Algo que, neste caso, não estaria dependente de um conjunto de condições materiais e objetivas tidas como ideias, mas antes para a possibilidade de um questionamento das relações e gestos que estruturam o quotidiano, das subjetividades e do possível num sentido mais alargado.
Ou, e agora fazendo referência a hipóteses que se poderiam qualificar como respeitantes a um certo “optimismo catastrofista” ou “optimista apocalíptico”, seria de salientar a ideia de que seria precisamente em eventos com tal especificidade que emergiria a possibilidade de uma suspensão e requestionamento do estado de coisas, dos mundos e formas de vida que o enformam. Uma ideia que, apesar de não ser aqui negada na sua totalidade, procurará ser aprofundada através de referências ao filme com o apoio de outras propostas, as quais vão não tanto num sentido escatológico que marca tais concepções, mas antes numa figuração messiânica que aponta para outra direção, como sucede com a ideia de “tempo do fim” ou “tempo que resta” apresentada por Giorgio Agamben.

E.2 Chronos e Eschaton. Tempo que Resta
Esta questão é, acima de tudo, uma questão temporal, de concepção relativamente ao tempo e ao que este significa e possibilita. A este nível, e mesmo sendo notória uma narrativa linear e cronológica no filme, este é marcada por diversos momentos com uma capacidade de intensificação e quase ruptura temporal – em particular, o momento em que o grupo em fuga decide voltar à Cidadela e entrar em confronto pelo seu controlo, numa mudança de estratégia política com implicações na relação com o real e sua temporalidade
É a partir desta leitura que se torna possível uma interpretação agambeniana relativamente à evolução do filme e das implicações ético-políticas do mesmo. Trata-se de uma interpretação baseada na problematização de Agamben (2005)[i] relativamente ao “tempo que resta” ou ao “tempo do fim”. Na sua reflexão, o autor pretende ir além de uma oposição entre chronos e eschaton, ou seja, entre uma concepção cronológica do tempo (representando a “duração do mundo da sua criação ao seu fim”) e uma escatologia apocalíptica (representando “um mundo por vir”).
Esta tentativa prende-se com a própria diferença entre messianismo (representado pelo apóstolo) e apocalipse (representado pelo visionário), dado que, enquanto o primeiro diz respeito ao “tempo do fim”, o segundo remete para o “fim do tempo”. A particularidade desta concepção messiânica da história passa pela referência a um momento em que o “tempo se contraí sobre si próprio e começa a acabar”, mesmo que se mantenha localizado entre o “tempo e o seu fim” – como refere Agamben, trata-se de um “tempo que resta”, um tempo entre chronos e eschaton, permitindo uma cesura que problematiza e impossibilita a própria oposição entre os dois. As possibilidades políticas de tal concepção temporal poderão tornar-se mais claras através da referência a uma das ideias com que Walter Benjamin finaliza as suas “Teses sobre o conceito de história”: “Como se sabe, os Judeus estavam proibidos de investigar o futuro. Pelo contrário, a Tora e as orações ensinam a prática dessa presentificação anamnésica. Isto retirava ao futuro o seu carácter mágico, que era aquilo que procuravam os que recorriam aos áugures. Mas isso não significa que, para os Judeus, o tempo fosse homogéneo e vazio, pois nele cada segundo era a porta por onde podia entrar o Messias." (Benjamin, 2010: 20; itálicos nossos)[ii]. Indo além da sua ligação teológica e da própria figura una do Messias, poder-se-ia ver em tal ideia uma ligação entre tempo e política que advoga uma ideia de contingência e possibilidade que privilegie o “aqui e agora”, uma concepção de tempo enquanto pura potencialidade.

E.3 “Chronos e Eschaton” – referências e semelhanças em Mad Max
Esta situação, de um “tempo que resta”, começa a torna-se visível quando, após terem conseguido escapar do primeiro momento de perseguição e de terem atingido aquele que seria o local inicialmente pretendido – local esse denominado de “Vale Verde das Muitas Mães”, um nome que não deixa de remeter para uma ideia de éden e de começo - , apercebem-se que o lugar que procuravam (já) não existe e que dele apenas resistiram um grupo de mulheres (as Valvuni), algumas das quais conhecidas de Furiosa (a qual nasceu e foi retirada enquanto criança de tal lugar). Sendo que, ainda antes de tal confirmação, a “dúvida” sobre a existência desse local começa a surgir quando as dificuldades e conflitos com que se deparam na fuga se intensificam. Quando chegam junto das Valvuni e elas lhes contam o que aconteceu, compreendem que tinham acabado de atravessar o que restava desse anterior Vale, agora transformado num local inóspito que as Valvuni tiveram de abandonar devido à falta de água.
O confronto com a ideia de que o lugar para onde desejavam chegar já não existe, após uma fuga que se revelou mais difícil do que aquilo que esperavam, configura não só um momento de desilusão e desespero, como o momento em que o “tempo se contraí sobre si próprio e começa a acabar”. Esse lugar, devido às condições de vida que enfrentavam e às recordações de infância de Furiosa, funcionava como que um Éden do qual se teria caído. A sua inexistência remete para um corte com uma cronologia que representava a “duração do mundo da sua criação ao seu fim”. Tal lugar configuraria, assim, uma espécie de Éden do qual a humanidade (ou parte dela) teria caído antes de se deparar com a situação pós-apocalítica na qual se encontraria de momento. As razões desse queda não são afloradas no filme, para além de referências a uma culpa que os “homens” (enquanto um género que pelas suas acções e mundivisões teria destruído o mundo, ou um “mundo”).
Além disso, também se poderia salientar a importância e papel do imaginário, e em particular da memória coletiva em qualquer processo político. Sendo verdade que o “Vale Verde” já não existe, num sentido físico e mais restrito do termo, a sua permanência na memória de alguns sujeitos acompanhado de possíveis lendas e discursos sobre o mesmo, não deixou de ter efeitos materiais, como aliás se observa no filme - isto é, sem a “promessa” de um “Vale Verde”, talvez tanto mais “real” quanto mais “imaginado” (e imaginado na sua relação e oposição a uma outra situação existente), a fuga de Cidadela e o processo que aí se inicia provavelmente nunca teria acontecido. E se é verdade que essa fuga não viu cumprida a sua promessa, sem esta talvez não teria sido possível o despoletar de um processo em que essa mesma promessa se visse confrontada e requestionada em favor de um processo mais imanente e aberto à contingência, com todos os limites e potencialidades que possa acarretar.
Face à situação com que se depararam, do não-regresso a um lugar prometido, surgiu no grupo uma primeira hipótese que, em parte, é semelhante e encontra-se na continuação da lógica da hipótese anterior. Esta teria como base um plano que incluiria uma viagem que perspectivavam durar 160 dias, possibilitada por um conjunto de recursos e provisões que restariam, implicando o atravessamento de um deserto de sal e tendo como esperança o atingir de um outro lugar onde, acreditavam, existiria água, recursos e a possibilidade de construir um mundo novo.
Esta ideia é exposta numa cena em que Furiosa convida Max a juntar-se ao grupo na viagem, algo que este recusa. Desta decisão, duas leituras são possíveis: 1) uma onde ele simplesmente recusa fazer parte de tal comunidade e pretende “seguir o seu próprio caminho”, como refere a Furiosa; 2) ou uma recusa que se deve, acima de tudo, ao que seria a sua descrença em tal plano, rapidamente expressa quando diz que a “esperança é um erro”, uma afirmação que mais do que uma desistência e um qualquer pragmatismo remete mais para uma concepção de não exterioridade em relação ao conflito no aqui e agora, isto é, de uma imanência onde o presente não é tomado como um meio para um qualquer fim futuro, bem como para a ideia de “que a salvação só surge quando se deixa de acreditar nela”.
Assim, e enquanto o “Vale Verde das Muitas Mães” remetia para um passado, mais ou menos concreto, este outro possível lugar a atingir adquire um sentido escatológico. E se à primeira vista poderíamos ver uma quase oposição entre os dois, a verdade é que ambos fazem parte de uma mesma concepção de tempo, em relação à qual uma concepção como a do “tempo que resta” não deixa de se opôr e ir além da mesma.

E.4 Tempo que Resta e Imanência
É por se encontram entre o “tempo e o seu fim”, entre um chronos sem a sua arché e a impossibilidade de atingir uma qualquer solução escatológica, que emerge uma situação de “tempo que resta”.
Esta situação surge quando, novamente através das visões que acompanham Max, este se debate com a necessidade de ajudar os seus amigos e, também, de contribuir para a criação de uma outra comunidade. Voltando atrás na sua decisão de “seguir o seu caminho”, acaba por convencer os restantes de que o plano que têm e pretendem seguir não é mais do que uma ilusão, que poderão tentar uma travessia do deserto mas não irão encontrar nada no seu final, enquanto que, caso compreendam que não existe um fora em relação aos conflitos e relações de poder, poderá existir uma possibilidade – inclusive redentora - de construção de um outro mundo. Esta possibilidade passaria por um regresso à Cidadela e uma luta pelos recursos e condições materiais que nela se encontra (da existência de água às infraestruturas). Neste sentido, dá-se uma defesa da imanência, e de uma estratégia política voltada para o reconhecimento das necessidades que têm em comum e para a forma como essas podem ser satisfeitas, de forma articulada com a construção de outros mundos e formas de vida, já sem a delegação da sua existência a uma qualquer entidade transcendente (do Estado a Deus).
Assim, ao invés de acreditarem numa salvação que adviria da aplicação de um programa que prometeria um futuro sem conflitos, com o qual não só não haveria qualquer relação imediata e concreta com o presente nem uma abertura a uma ideia de contingência, reconheceu-se que, de forma a atingirem as suas intenções seria necessário um confronto político com o Soberano.

E.5 Potência destituinte
Após a aceitação e adopção de tal decisão, acabam por conseguir voltar à Cidadela, numa luta com dificuldades e que não deixou de envolver a morte de alguns dos membros do grupo, mas também a morte do Soberano e a vitória sobre o seu exército. É neste seguimento, e também tendo em conta o que sucede quando regressam, que se pode questionar a hipótese de uma destituição do poder como presente no filme. No fundo, trata-se de um debate sobre se a cena final corresponderia a uma defesa de uma potência destituinte, ou se, pelo contrário, não passaria de uma simples substituição de um Soberano por outro, mesmo que agora de cariz democrático e com sensibilidades ético-políticas diferentes.
Após o já referido momento em que o corpo de Immortan Joe é revelado, o grupo é içado para o “alto”, e com ele não vão apenas os elementos que o constituem, mas também sobem várias pessoas da cidade, cuja diversidade não deixa de representar, pelo menos, uma entrada ou uma representação política de outras subjetividades e grupos sociais, até então afastadas do poder. Sendo que para esta leitura também contribuí a abertura das comportas, como sinal de satisfação das necessidades e distribuição dos recursos, agora de acesso e uso por parte de todos.
Contudo, tal gesto e as alterações de poder que possam representar, não significam, por si só, uma possível situação de destituição de poder, mas muito provavelmente a constituição de um novo. Isto tanto porque tal “subida” é precedida de um momento de aclamação a Furiosa quando esta se revela, como se lhe fosse atribuída e delegada a Soberania.
Uma hipótese que problematize esta “subida” num outro sentido, mesmo que em si contrária ao que diria respeito a uma potência destituinte, diz respeito à possibilidade de tal “subida” ter como objetivo o “desativar/inoperar” da “máquina” – até porque, e novamente segundo a leitura de Agamben, tal gesto não implica necessariamente a sua destruição, mas antes um gesto que desative e inopere a sua “função de comando”, neutralizando-a. Mas esta hipótese é problemática desde logo por implicar a atribuição de tal tarefa a um dado sujeito – individual ou coletivo -, o qual não deixaria de se encontrar preso numa dialética entre o constituinte e o constituído - no sentido em que implica um primeiro passo de "ocupação do poder" mesmo que com o objetivo de o "inoperar" -, e, assim, encontra-se incapaz de sair do próprio paradigma que reproduz a Soberania. O próprio facto de tal ser realizado por personagens que, tal como retratadas no filme, parecem quase destinadas a enfrentar e suprir qualquer adversidade também não deixa de invocar uma certa ideia e figura de vanguarda.
No entanto, é através de tal problemática que se pode encontrar alguns dos principais limites e alvos de crítica em relação à ideia da potência destituinte, precisamente por trazer ao de cima o questionamento sobre as estratégias e limites de acção política atualmente possíveis[iii] – em particular, aqueles que se confrontam com o poder do Estado. Isto é, será que a ideia da potência destituinte não tem implícita uma concepção do poder que, em última instância, parte de uma posição em que se toma como pretensamente exterior ao mesmo - ou, pelo menos, como partindo da possibilidade de uma não relação com o poder no atual momento, com tudo o que tal implica.

E.6 Contingência e Formas de Vida
Para além desta dúvida em torno da soberania, o filme acaba com várias questões em aberto. Para além do questionamento sobre as formas de organização futuras na Cidadela, é ainda de salientar o próprio futuro das personagens, em particular o de Furiosa e Max. A cena final acaba precisamente com uma troca de olhares entre os dois – na qual se denota uma componente afetiva e um reconhecimento mútuo do trabalho realizado -, num momento em Furiosa, ao subir, se apercebe que Max ficou em “baixo” e parece ir embora, provavelmente para novamente “seguir o seu caminho”. Devendo-se tal decisão não só ao que poderia ser o reconhecimento de uma tarefa cumprida e esgotada em tal acção, mas, talvez, também ao desejo de não fazer parte de um possível novo governo. Ao invés, poder-se-ia supor a tentativa de construção de uma outra forma de vida[iv] - algo que se liga de forma central à ideia de potência destituinte[v] -, ainda que tal tentativa pareça passar unicamente por uma forma individual e, como tal, apresente várias limitações, desde logo devido à dimensão relacional das formas de vida. O momento que se segue, e que corresponde ao momento final do filme, apresenta uma citação que parece confirmar esta hipótese relativa ao futuro de Max: “Where must we go… / we who wander this wasteland / in search of our better selves?”.
No entanto, o facto de o filme acabar de tal forma, sem uma enunciação clara do que “viria depois”, remete para a própria dificuldade de figuração de um "mundo por vir" e das outras formas de vida que lhe responderiam, até pela sua dificuldade e quase impossibilidade de representação, isto é, pela impossibilidade de definir, à partida e em tal contexto, como seria tal mundo. Reconhece-se, assim, que essa definição seria sempre influenciada por imaginários e práticas de um contexto anterior, bem como que tal construção remete para um processo que implica uma relação sempre contingente e aberta ao conflito.


[i] Agamben, G. (2005). The time that remains: A commentary on the letter to the Romans. Stanford University Press.
[ii] Benjamin, W. (2010). O Anjo da História. Assírio & Alvim.
[iii] Numa entrevista recente, Agamben apresenta uma leitura que desafia a argumentação apresentada até aqui, em particular no que seria a primazia da “luta” sobre a “fuga” (mesmo que tais conceitos apresentem significados diferentes). Contudo, não é de supor que Agamben esteja pura e simplesmente a dizer para “fugirmos”, mas antes a defender que as práticas políticas que escolhemos e aplicamos não só se mantenham dentro e reproduzem uma determinada metafísica política e teologia de teor ocidental. Sendo que indica, como única possibilidade no atual contexto, uma procura de outras formas de subjetivação política para além daqueles que atualmente são as enquadradas e capturadas pelas lógicas do “Poder”. Neste sentido, uma das razões pela qual a ação representada neste filme não deixa de apresentar este carácter ambíguo com a soberania deve-se precisamente pela adopção de uma concepção de acção política marcada e estruturado pelas lógicas do “Poder” e da Soberania. Como refere Agamben:
“Penso que o modelo da política que conhecemos, fundado sobre a ação e sobre a luta, no contexto do domínio da economia e do estado de segurança em que vivemos, tenha se tornado obsoleto. O paradigma da luta, que monopolizou a imaginação política da modernidade, deve ser substituído por aquele da linha de fuga. Penso que na Grécia o Syriza teve de capitular justamente porque havia se empenhado numa luta sem saída, renunciando à única via possível: a saída da Europa. E isso não é verdade apenas na política, mas também para a existência individual: o essencial, em todo caso, e Kafka não se cansa de lembrar, não é lutar, mas encontrar uma linha de fuga. Como diz Pulcinella: ubi fracassorium, ibi fuggitorium, onde há uma catástrofe, aí há uma linha de fuga.” http://flanagens.blogspot.pt/2016/09/do-desastre-nos-salvara-vileza-de.html
[iv] Sendo que, pelo termo “forma-de-vida”, Agamben pretende significar, acima de tudo, uma vida em que cada forma, ato, gesto e processos de vido não são meros factos, mas sempre e acima de tudo possibilidades de vida, sempre e acima de tudo potencialidade[iv] – “By the term form-of-life, we mean a life that can never be separated from its form, a life in which it is never possible to isolate something like a bare life. A life that cannot be separated from its form is a life for which, in its way of living, what is at stake is living itself, and, in its living, what is at stake above all else is its mode of living. What is at stake, then, is a life in which the single ways, acts, and processes of living are never simply facts, but always and above all possibilities of life, always and above all potentiality [potenza].” (Agamben, 2014: 73). Agamben, G. (2014). What is a destituent power? Environment and Planning D: Society and Space32(1), 65-74.
[v] “The destitution of power and of its works is an arduous task, because it is first of all and only in a form-of-life that it can be carried out. Only a form-of-life is constitutively destituent.” (Agamben, 2014: 72). Agamben, G. (2014). What is a destituent power? Environment and Planning D: Society and Space32(1), 65-74.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Acção, ataque, instinto, relação, ...

Tornou-se um lugar comum usar objectos da cultura popular em discussões que, pelo menos à partida, tendem a ser associadas a mundos supostamente não contaminados com aquela que seria a característica alienante e menos sofisticada de tais objectos. De várias expressões da arte contemporânea a várias correntes do que globalmente se poderia denominar de teoria crítica, os exemplos abundam. Respeitantes a gostos pessoais relativamente ao objecto, a tentativas de dissimular (ou mesmo, nas intenções mais "correctas", desconstruir) alguma erudição, ou meramente com um uso instrumental (seja ele ao nível de crítica de alguma falsa consciência ou como apologia de uma qualquer autenticidade que tais objectos melhor captariam), entre outros possíveis objectivos. Aqui não é a primeira vez que tal acontece (vide post anterior), e neste continua-se, novamente com referência ao mesmo objecto - o universo de Dragon Ball.
Num episódio recente, a personagem principal, Son Goku, utiliza novamente uma técnica (ou forma, ou, para ser mais correcto e parafraseando o autor da série, um "estado", a "state of being") recentemente introduzida na série, sobre a qual nos iremos debruçar aqui. O nome original, em japonês, é Migatte no Gokui, o qual é alvo de várias contestações quanto à sua tradução fiel. Popularizado enquanto Ultra Instinct, as traduções mais literais apontam para Key of Egoism ou Mastery of Self-Movement, as quais parecem reproduzir mais fielmente o significado do conceito bem como as questões que aqui serão abordadas. Algumas referências aproximam este conceito com um outro pertencente ao léxico das artes marciais, o de Mushin.
Para lá das dimensões estéticas e lúdicas, o que me interessa particularmente neste objecto e nesta referência passa pela possibilidade de abordar um tema que me é caro e que tem sido abordado de formas diferentes em alguns domínios filosóficos, seja como crítica à metafísica ocidental e às suas concepções duais de corpo e mente ou sujeito e objecto, a crítica da finalidade e exterioridade da acção e as questões que remetem para a presença no mundo, as possibilidades de relação com a filosofia oriental e em particular o universo das artes marciais (em particular nas suas influências taoístas e budistas). Questões certamente vastas e que também não serão exploradas com a profundidade devidas aqui, mas que servem como referência ao que se pretende realmente aqui discutir - o conceito e a prática de acção num contexto de relação entre dois corpos, em particular no caso de uma luta de artes marciais.
No episódio em questão, Son Goku atinge tal estado depois de ter sido levado a um situação limite e de, como referido, novamente ter sido capaz de ir para além dos seus limites internos. As capacidades que demonstra em tal estado permitem-lhe agir de forma instintiva, ou, como refere a personagem Whis (um anjo encarregue de cuidar e ensinar artes marciais ao "Deus da Destruição", e que na série igualmente treina Goku e Vegeta), ser capaz de usar cada parte do seu corpo sem depender de uma intencionalidade ou um processo de pensamento anterior a uma acção, isto é: de agir não tanto num sentido de uma reacção que exige uma resposta mental anterior para ser concluída (introduzindo assim um atraso na resposta), mas mais uma espécie de reflexo capaz de fazer com que o corpo responda de forma instintiva/automática e ajustar-se de forma fluída aos mais diversos estímulos (em particular, aqueles adversos, como no caso de uma luta). Como sucede no episódio em questão, Goku torna-se capaz de evitar qualquer dos golpes da adversária (Kefla) que ainda anteriormente o tinha colado numa situação complicada, bem como de vencer uma luta que anteriormente parecia bastante complicada.
Como se torna óbvio, tal estado, a existir e em que forma (podendo-se abordar a própria relação entre conhecimento e corpo, intenção e acção, etc), não se revela fácil de atingir. Sem fazer grandes pesquisas (o que claramente é um erro), a página da Wikipédia do conceito de Mushin refere alguns dos arquétipos das artes marciais, salientando que tal estado representa uma atitude Zen de mind without mind, em que alguém consegue esvaziar a sua mente e ao mesmo tempo deixá-la aberta a tudo, como que num estado de meditação. Estas ideias levam-nos para várias caminhos, mas parecem-me bem sintetizadas na seguinte formulação: "Mushin is achieved when a person's mind is free from thoughts of anger, fear, or ego during combat or everyday life. There is an absence of discursive thought and judgment, so the person is totally free to act and react towards an opponent without hesitation and without disturbance from such thoughts. At this point, a person relies not on what they think should be the next move, but what is their trained natural reaction (or instinct) or what is felt intuitively. It is not a state of relaxed, near-sleepfulness, however. The mind could be said to be working at a very high speed, but with no intention, plan or direction." As implicações desta concepção são várias e não unicamente circunscritas a um contexto de luta, antes potencialmente extensíveis ao quotidiano em geral, ao uso do corpo, associando-se as já anteriormente referidas críticas das oposições entre corpo e mente, sujeito e objecto ou sujeito e acção. Trata-se de uma concepção claramente divergente das concepções ocidentais de sujeito, tomado enquanto um indivíduo de limitações precisas e dotado de um pensamento, intencionalidade e capacidade de acção livre e potencialmente influente no mundo. Isto é, um conjunto de questões que para além de filosóficas e/ou respeitantes ao universo das artes marciais, também são questões éticas e políticas, com claras conotações sobre a constituição de sujeitos e de cosmologias no mundo ocidental. Contudo, e apesar do interesse nas mesmas, deixar-se-á tal exploração para outros textos.
Voltando ao episódio em questão e ao que tal sugere em termos de luta, é de salientar a referência final de Whis quando este resume o combate entre Goku e Kefla e aborda os limites do protagonista em atingir tal estado. Algumas das principais dificuldades mas também dos pontos mais interessantes sobre este conceito e prática são enunciados por Whis. A questão salientada aborda a ideia de "atacar inconscientemente/instintivamente", a qual é tomada como a parte mais difícil para o domínio do estado de Ultra Instinct. Enquanto que a defesa pode ser vista como uma resposta a um estímulo (e possível intencionalidade) exterior, o ataque, pelo menos na forma como geralmente concebido, implica uma intencionalidade e uma dimensão de eficácia que introduzem atrasos temporais, moldando a acção ao pensamento e emoção do momento. Não se trata tanto de um estatuto superior do ataque em relação à defesa, mas acima de tudo a forma como o ataque se encontra associada a conceitos que fazem parte das concepções tradicionais (pelo menos no ocidente) de acção, ligadas à vontade, à intencionalidade, autonomia do sujeito, eficácia, separação entre sujeito e objecto, etc. 
Assim, a possibilidade de, tal como numa acção de defesa, também um ataque ter uma dimensão instintiva representa uma clara mudança de paradigma sobre a própria ideia de acção. Sendo que, para além do já referido, e partindo do enunciado por Whis, se poderia ainda colocar uma outra hipótese. Não só pensar uma prática de ataque para lá de uma projecção de intenções e influenciada por vários pressupostos (escapando a um pensamento que se prende quando focado num dado fim, como poderá ser a tentativa de "acertar", "acertar num dado local", ou inclusivamente a intenção de atingir tal estado), como se poderia falar da possibilidade de introdução de uma concepção ética e relacional em que mesmo um ataque deixa de estar preso à exigência de "inculcar dano no outro", para lá da intenção de magoar o outro, mas ao invés a possibilidade de se relacionar com tal sujeito de uma forma situada e imanente, para lá de um intuito e reacção (como poderia ser uma situação de vingança, resposta, domínio, etc). A introdução de uma dimensão de jogo (play, como entendido nos debates éticos sobre este conceito), para lá do ganhar ou perder e em que ambos se encontram presentes e num possível crescimento mútuo no contexto da acção, escapando assim às concepções metafísicas ocidentais e aos seus ideias de intenção, vontade, reconhecimento, ganho, culpa, etc.
Uma tarefa que é, reconhece-se, essencialmente prática e situada. 

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Da ética de Goku

Algo que poderá justificar o sucesso do anime Dragon Ball (nas suas diferentes fases) poderá residir na capacidade de, mesmo que subtilmente, este não se basear na repetição de outros projectos marcados por uma defesa abstracta de ideais como o Bem, a Justiça ou até a Amizade. Nem mesmo, por mais contraditório que possa parecer, do uso e supremacia da força para os fazer cumprir (algo que, se levado a um nível mais fundo, até poderá ser tomado como problemático tendo em conta a relação entre meios e fins que tal princípio estabeleceria, tomando o critério da força como decisor da verdade e dos princípios que, supostamente, deveria regular a existência). Mesmo sendo verdade que tais temas não estão de todo ausentes, estes vão surgindo em contextos que os problematizam em situações e disputas específicas, complexificando muitas vezes as próprias oposições e fazendo uso da ambiguidade - inclusive como estratégia para manter o interesse na própria série de animação. Porventura, tal observa-se de forma mais decisiva no protagonista da série, Son Goku, em relação ao qual até se poderiam atribuir de forma mais categórica os ideias e intentos de defesa do Bem, da Justiça. da Paz, e da Amizade, bem como pelo facto de se tratar da personagem tida como sendo a mais forte (ainda que nem sempre o seja, e nem sempre seja aquele que vença os principais inimigos que vão surgindo). Este breve texto debruça-se sobre isso, e pretende salientar a importância de uma perspetiva ética que possa ir além de concepções normativas e categorias exteriores à singularidade de qualquer um/a e da imanência da situação em que se encontra. Reconhecendo, contudo, que são diversas as éticas que guiam as existências e evoluções das diferentes personagens e, em particular, a forma como se reflectem na forma como lutam e nas razões que encontram para tal. No entanto, e sendo relativamente esquemático e orientado para o que se pretende aqui apresentar, enumeraria 3 grandes tipos. 
Uma 1ª baseada nos tais ideais de Justiça e de defesa da Paz e da existência das pessoas de que gostam, bastante exemplificada em personagens como Son Gohan e Future Trunks, os quais tendem a basear e encontrar em tais conceitos as suas principais razões para lutar (mesmo que em ambos a sua capacidade aumente essencialmente através dos sentimentos de raiva/revolta, e mesmo que tal sentimento surja a partir dos ideias que defendem). Esta ética é várias vezes tida como insuficiente, e ambos, ao longo da história da série, recebem conselhos de que o seu potencial e a própria capacidade de defenderem os seus ideias poderá não ser atingido caso não mudem. Esta situação é particularmente exemplificada no mais recente Dragon Ball Super, numa situação em que Vegeta refere a Trunks que o seu objetivo não poderá ser simplesmente o derrotar o sujeito X ou Y, mas sim tornar-se mais forte de forma a tornar-se mais capaz de lidar com qualquer eventualidade e adversário e, por extensão, conseguir cumprir o que se propõe:
Outra ética de luta é representada pela maioria dos inimigos que vão surgindo ao longo da série. Para estes, o que está em jogo é, geralmente, fazer uso da sua força de forma a serem reconhecidos como os mais fortes (do mundo, do universo, etc) e dominarem e/ou destruírem o que possam encontrar (desde logo, quem lhes possa ou pretende fazer frente). Muitas vezes tais objetivos misturam-se com sentimentos de orgulho ou de vingança (como se torna bastante claro na personagem de Freeza, o qual, nos seus reaparecimento ao longo das séries, é totalmente motivado pelo desejo de vingança em relação a Goku). Em todo o caso, o que se encontra em todos estes casos é uma ética que se funda sempre em função de um exterior. E mesmo que qualquer ética seja sempre relacional, a questão aqui expressa-se na determinação que é dada a esse exterior. As existências aqui em jogo, mesmo que actuando de um ponto de vista egoísta, encontram-se sempre dependentes de um exterior para a sua própria validação/legitimação. Além disso, e por muito que tal possa parecer contraditório tendo em conta a sua dependência em relação a um exterior, observa-se uma incapacidade de relacionamento com outras existências e singularidades.
O fundamental da 3ª ética já foi referida anteriormente, consistindo em grande parte na resposta que Vegeta dá a Future Trunks. Esta ética poderá ser exemplificada em Vegeta e em Son Goku, ainda que de formas diferentes - e é um pouco sobre essa diferença que me interessa focar, até para o objectivo de se poder pensar uma ética e uma prática do cuidado de si que, mesmo que à primeira vista possa encontrar-se alicerçada numa dimensão individual, permita ir para além dos principais problemas associadas a esta e da própria oposição entre individual e colectivo.
A relação entre Vegeta e Goku é uma das principais relações da série, se não mesmo a principal. Inicialmente um inimigo de Goku, Vegeta (o príncipe dos Guerreiros do Espaço/Saiyajins) vai-se tornando o seu principal aliado nas várias lutas que travam para defender a Terra/Universo (ainda que por vezes com revezes, como acontece a determinado em momento, quando Vegeta se deixa ser controlado por um inimigo de forma a soltar a sua raiva e espírito anterior e assim tentar derrotar e superiorizar-se a Goku). Entre eles existe uma rivalidade, maioritariamente alimentada por Vegeta, que os leva a evoluir mutuamente mas que é experienciada de forma diferente pelos dois e que explica parte das variações referentes às inclinações éticas que os animam. Sendo verdade que ambos treinam e lutam para se tornarem o mais fortes possíveis e também lutam para defender a Terra/Universo e as pessoas que lhes são mais próximos, mas existe uma diferença nas razões para tal. Apesar da sua evolução ao longo das séries, Vegeta não deixa de ser bastante influenciado pelo seu orgulho e marcado pelas derrotas que vai tendo, e o que o essencialmente motiva é tornar-se o ser mais forte do Universo (e, por extensão, mais forte que Goku). Também é verdade que Goku não rejeitaria propriamente a possibilidade de se tornar o mais forte, mas o que verdadeiramente o motiva para treinar lutar é outra coisa: o prazer que encontra nas lutas como uma forma de contínua superação e teste de si mesmo, como uma forma de comunicação e partilha com outros, sem que tal processo adquire outra finalidade ou exterioridade que não o treino e a luta em si. De forma algo esquemática, é a diferença entre pretender ser o mais forte, e pretender ser mais forte. Algo que é referido pelo próprio Vegeta, como se poderá observar no seguinte vídeo:

Até pela mitologia da série, o facto de serem apenas estes dois os únicos que são 100% Saiyajins poderá explicar parte da sua ética (numa relação, que poderá ser tomada como essencialista, entre uma dada existência/singularidade e uma dada potencialidade), bem como explicar a sua diferença em relação a Gohan e Trunks ("metade humanos/terráqueos"), e, porventura, a própria diferença entre Vegeta e Goku (este último tendo vivido quase toda a sua vida na Terra, como se se pretendesse opôr uma natureza guerreira dos Saiyajins a uma qualquer dimensão "humana" presente no planeta Terra).                                    
O elemento de comparação presente em Vegeta é distinto de um certo centramento em si por parte de Goku, na medida em que a grande necessidade de reconhecimento do primeiro não se estende ao último. As suas acções e objetivos não se restringem a uma qualquer finalidade e exterioridade a si. E mesmo quando este deseja lutar e testar-se contra outros (algo que anseia constantemente por fazer, em particular contra adversários mais fortes - situação ligeiramente diferente em Vegeta -), tal vontade surge essencialmente do reconhecimento de que tais lutas e relações que aí se constituem permitem um teste de si e um maior conhecimento de si através da experiência concreta dessa luta e do conhecimento que poderá adquirir. Ou seja, trata-se da relação que Goku estabelece com um outro, bem como do outro em si.
Contudo, e mesmo que tal marque a ética do protagonista da série nas lutas, não se trata da única característica que o distingue, existindo outras que, no seu conjunto, se relacionam com esta e até a possibilitem. Por exemplo, em várias situações Goku coloca-se numa posição deliberada de vulnerabilidade, em que abdica de usar toda a sua força (aliás, raramente o faz), entrando várias vezes numa luta com o objectivo deliberado de se colocar em risco (mesmo que se possa dizer que, dada a sua força, se trata de um risco calculado), como se de uma "brincadeira a sério" se tratasse, em que vai procurando conhecer a outra pessoa, a sua energia, as suas técnicas, e procurar relacionar-se com essa pessoa sem impôr necessariamente a sua vontade, pelo menos, ao início - mas antes abrir-se ao que possa surgir do outro. Esta situação é particularmente exemplificado num episódio recente, no qual Goku, de forma secreta, contrata um assassino, que é também o guerreiro mais forte que conhece, com a ordem de matar Goku, apenas para poder lutar contra ele no seu máximo:
Como também demonstrado na actual saga de Dragon Ball Super, respeitante ao denominado "Torneiro do Poder", a participação de Goku não é motivada pela necessidade de vencer de forma a impedir que ele próprio e o seu universo desapareçam como poderá acontecer caso perca - ainda que tal também seja algo que pretenda atingir. Mas, acima de tudo, e como o próprio afirmou de forma desafiante várias vezes, ter a oportunidade de lutar contra os guerreiros mais fortes dos vários universos e assim se poder testar. A sua participação não se guia por qualquer estratégia que não o aproveitar e experienciar tal momento para se testar e evoluir o seu potencial. Quando luta contra adversários mais fracos procura guardar energia e baixar um pouco a sua guarda de forma a poder aprender com as técnicas de outros. Ao mesmo tempo, constantemente procura lutar contra os adversários que lhe parecem ser mais fortes. Inclusivamente, uma vez ajuda um dos seus principais rivais numa situação em que este poderia perder, apenas para ter a oportunidade de lutar contra ele no final.
A luta é a forma de comunicação por excelência de Goku, o meio em que partilha com outros a sua singularidade e procura genuinamente conhecer e, se possível, mudar outras pessoas (como seja nos seus objectivos de destruição). Tal concepção, se alargada a outras dimensões, e abusando de forma deliberada alguns debates sobre a relação entre amigo e inimigo, permitem-nos tirar conclusões sobre uma inclinação ética possível para lidar com outros, com a diferença, com a adversidade, etc. Trata-se de um aceitar da possibilidade de ser afectado por outros éticas e energias, de uma constituição de si com outro (nem que seja através do confronto) - algo que também implica um reconhecimento da contingência (desde logo, da contingência da própria luta).
Torna-se, assim, necessário o reconhecimento do inimigo enquanto sujeito, o que ocorre em Goku. Alguns dos seus inimigos posteriormente tornam-se amigos (como acontece com Vegeta). Alguns deles, mesmo quando derrotados por Goku, não deixam de merecer o seu respeito. Como é exemplo esta situação em que, prestes a vencer um inimigo, admite a admiração que tem por ele enquanto ser, pela sua capacidade de contínua mudança, pela luta que lhe permitiu, e inclusivamente desejando que este possa reencarnar noutra pessoa para uma outra luta:
O limite de Goku parece surgir quando, e novamente pedindo emprestado outra categoria, o inimigo se torna em hostil, indo não contra a sua potencialidade mas sim contra a sua própria existência (bem como a existência da Terra/Universo e das pessoas que lhe são próximas). Porventura, essa é a outra característica central da ética de Goku, o respeito por toda e qualquer existência, pela existência enquanto potencialidade. Trata-se, assim, de uma combinação, como se de dois pólos em relação se tratassem, entre um desejo de combater e um respeito pela existência, mutuamente constituintes. Neste sentido, poder-se-ia ainda identificar um certo vitalismo presente nesta série (particularmente exemplificado nas referências à energia de vital e ao "controlo do Chi" por parte das diversas personagens, de onde surge o seu poder), o qual também se estende a outros projectos de manga/animes (e tanto se poderia ainda dizer sobre isto...).
A luta/confronto é aqui tomada, então, como uma das dimensões da existência, mesmo que não seja a única. E ainda que se possa ver aqui traços de uma dimensão individual e empreendedora, tida como característica da actual sociedade neoliberal, seria bom não nos deixarmos prender a uma visão assimétrica do capitalismo e das éticas que o animam, nem sequer da correção do que seriam os males da "natureza humana". A sua derrota não se faz com a derrota de características que se encontravam presentes já antes da sua emergência, mas sim do que o torna singular (mesmo que este agora já não encontre exterior e se tenha estendido à sociedade, não existindo propriamente dimensões "neutras" que simplesmente se possam usar - na maioria das vezes acontece precisamente o contrário). Além disso, e como aqui se salienta, tal vontade de superação adquire uma outra tonalidade quando associada à sua singularidade e potencialidade e sem se encontrar restrito a uma qualquer finalidade exterior - como acontece com Goku, a sua vontade de lutar não se deve à procura de qualquer título ou resultado, a uma superação ou destaque face a outras existências.
Como pensar, então, tais questões numa perspectiva coletiva? Reconhecendo-se, desde logo, que a potencialidade que temos não é a mesma que têm Goku e restantes Saiyajins (mesmo que que estes não se superem e vencem necessariamente por serem mais fortes). No entanto, é óbvia a diferença entre o seu enquadramento numa ficção, com os poderes que lhe são conferidos e o guião construído, e a situação "real". Um primeiro aspecto poderia consistir em recordar que Goku não treina e não luta para ser o mais forte, ainda que também tencione ficar mais forte ao testar-se continuamente (algo que poderá ter várias correspondências em outras dimensões para lá da luta). Mas, talvez, a principal questão seria a de estabelecer um projecto/dinâmica colectiva sem que este se encontrasse dependente de factores como o reconhecimento ou a tentativa de obter destaque, em que os sujeitos que se encontrassem presentes em tal situação fossem para lá de tais desejos e se implicassem num trabalho que é, em primeiro lugar, um trabalho de si sobre si e um trabalho realizado de forma relacional. Neste sentido, a animação para tais projectos e para a participação nos mesmos não se remeteria para algo exterior (o reconhecimento por parte de abstrações como a Sociedade ou a luta pelo poder Estado, mesmo que tais táticas possam ser usadas em situações concretas), nem pela tentativa de personificar protagonismos e lideranças informais, mas antes para a construção de algo que reconhecesse o sentido contingente e imanente do mesmo, realizado sobre si e em relação com outros.
Contudo, para pensar de forma decisiva tal perspetiva coletiva, muito mais se torna necessário. Desde logo, de experiências concretas e de relações.

(Nota: texto em edição)

terça-feira, 26 de abril de 2016

Notas em torno da modalidade da existência - reflexões a partir do straight edge

Numa entrevista para o livro "Sober Living for the Revolution: Hardcore Punk, Straight Edge, and Radical Politics", Ian MacKaye (vocalista de bandas como Minor Threat e Fugazi) refere que, para ele, o straight edge representa uma declaração pelo direito de viver a vida da forma como se desejava. Esta afirmação, não só por ser proferida a partir de uma implicação que à primeira vista poderá parecer mais individual que coletiva - "Straight edge was just a declaration for the right to live your life the way you want to (...)" -, não deixará de suscitar diversas interpretações e dúvidas sobre a sua adequação ao movimento em causa - como sempre acontece sempre que se procura, mesmo de um ponto de vista pessoal e situado, definir qualquer movimento estético, ético e/ou político. No entanto, se enquadrarmos esta afirmação no seguimento da entrevista e do raciocínio que se estava a explorar, e se a lermos a partir de outras reflexões (como se pretende fazer aqui), poderíamos afirmar que essa frase tem como base uma forte implicação ética sobre aquilo que se poderia considerar como uma vida política, bem como as relações que se estabelecem entre indivíduo-coletivo em qualquer experiência comunitária/coletiva.
A afirmação de MacKaye surge no encadeamento de um raciocínio sobre as reações que as suas opções ético-políticas tiveram, tanto as suas expressões enquanto forma de vida como as letras escritas por ele (em particular, a letra de "Straight Edge"). Sendo que aqui, como se poderá perceber ao longo do texto, não interessa tanto explorar o que seriam as virtudes das opções e formas de vida desta ou daquela pessoa, deste ou daquele movimento, desta ou daquela cosmologia - desde logo, não as de MacKaye. Antes, salientar a forma como este se posiciona relativamente ao confronto em causa, às reações que obteve devido às opções por ele tomadas (reações que, em certos momentos, chegaram a atingir a forma de ameaça).
Como afirma MacKaye, a parte mais importante da letra de "Straight Edge" não é quando este afirma que não vai fumar isto ou aquilo, ou que considera que tem coisas mais importantes a fazer, ou outra qualquer conduta por ele tomada - o que não é o mesmo que afirmar uma equivalência, num plano ético, dessas mesmas práticas e condutas. A parte mais importante da letra diz respeito ao verso inicial, "I`m a person just like you.". Esta frase, pelo menos da forma como aqui se pretende explorar, não é a reivindicação de uma essência comum relativamente ao que seria a humanidade (até pela subsequente afirmação de uma diferença em termos de práticas e concepções sobre a vida e o mundo), nem implica a afirmação de uma superioridade que colocaria uns (aqueles que adiriam ao straight edge) numa posição mais "humana" e/ou moralmente mais elevada (dessa forma também prescrevendo uma identidade, ou uma forma de vida, que deveria ser atingida). Com esta frase, cujas implicações se observam ao longo de toda a entrevista, recusa-se igualmente um certo moralismo e uma atitude prescritiva em relação ao outro, atitude essa que em certos momentos e práticas caracterizou parte do movimento straight edge.
No entanto, e é também por aqui que esta posição se torna interessante e adquire uma dimensão ética-política que permite questionar a tal relação entre indivíduo-coletivo, tal não implica uma equivalência de todas as práticas e opções, de todas as formas de vida, de todas as concepções do mundo. Esta posição, como é notório em toda a entrevista, parte de uma ética situada, a qual procura não o alastramento do que seria uma ideologia e prescrição de uma mesma conduta e identidade em relação aos outros (a hipótese de uma tomada da "consciência" correta, por parte de todos, antes de uma qualquer situação de revolução), mas antes a reivindicação de um direito de existência de singularidades num dado meio/contexto/coletivo. Correndo o risco de realizar uma sobre-interpretação e uma passagem demasiado grande, diria que a posição expressada por MacKaye não é a de quem pretende propagar e exigir aos outros a sua adequação a uma dada identidade de forma a pertencer a um determinado meio/cena nem de forma a "agir corretamente", mas sim que essas práticas e esse meio - ainda que não colocando em causa as dimensões éticas-estéticas que o possam caracterizar -, torne possível a existência de diversas singularidades, bem como a possibilidade de essas existências poderem expressar e colocar em prática a sua potência. E isto não no sentido de uma identidade e/ou de uma consciência, a qual seria pretensamente mais superior e esclarecida, que se deveria atingir pela pertença a um projecto. A ética que MacKaye parece atribui ao punk, e que poderia ser extensível àquela que parece ser a sua concepção de uma vida e ação política, é uma de contínua experimentação e de crítica, algo que se depreende de uma afirmação em que coloca a "energia" (e aqui até poderíamos dar um sinto espinozista/deleuziano a este conceito) do punk não tanto no que seria a especificidade e/ou grandiosidade deste ou daquele indivíduo que em si conteria a verdade e/ou essência do punk, mas antes em todo um movimento que remete muito mais para aquilo que são as potencialidades que surgem quando se dá um encontro e partilha entre existências. Para um "rio", como MacKaye designa na seguinte frase: "It seems that they are talking about an energy that was contained within them - whereas I see an energy that is a constant ever-flowing river. And this river has always been there, and it always will be there. And what this river ultimately stands for is the free space in which unconventional, unorthodox, contesting, and radical ideas can be presentend.". Não se trata, como referem uns amigos, a defesa de uma identidade, daquilo que o "eu" poderia ser, mas antes um questionamento e uma politização da modalidade de uma singularidade, das formas e do como "eu sou o que sou".
A par deste reconhecimento relativamente ao direito de existência de qualquer singularidade (pelo menos a priori, antes de qualquer encontro e/ou confronto), o reconhecimento de que uma existência não se encontra dependente de um qualquer critério de eficácia ou grandiosidade relativamente às suas práticas e efeitos de forma a existir, haveria, ao mesmo tempo, uma outra dimensão que diz respeito a este "free space" - isto é, a uma possibilidade que é como a condição essencial para que tais ideias contestatárias possam se expressar e desenvolver, a possibilidade para que determinadas singularidades/existências e a sua potência possam ter lugar, reconhecendo-se que a potência é sempre dependente de uma relação com outros (e, como tal, implica sempre uma momento de subjetivação, de des-indentificação, de mudança).
Sendo que, como se torna óbvio, esta pluralidade de singularidades, mesmo que não implicando a adequação a uma identidade e/ou essência que se tomaria como superior e deveria homogeneizar um dado meio, também não implica a equivalência, em termos ético-políticos, de qualquer prática, forma de vida e concepção do mundo. E é justamente aqui que, de forma mais decisiva, a relação entre o plano individual e o plano coletivo se dá - ao mesmo tempo que se torna necessária uma ética e uma abertura que implique o reconhecimento de uma singularidade diferente da minha e a sua possibilidade de existência, também se torna necessária uma guerra em relação às éticas e singularidades que coloquem em causa a existência e potência minhas e de outros. Neste sentido, e aqui assumindo uma ideia de guerra que politiza qualquer existência e cada gesto, trata-se de um combate político não tanto pela virtude ou elevação deste ou daquele predicado, desta ou daquela identidade, mas antes da possibilidade de uma relação entre diferentes éticas e singularidades - de uma relação que, assume-se, nunca deixará de implicar uma ideia de conflito, de um conflito que é sempre ético-político, e que de passará, desde logo, pela definição das modalidades desse mesmo conflito e das concepções éticas em confronto.
Não se trata, assim, da defesa desta ou daquela identidade ou conduta em particular, nem de todas as identidades e condutas em geral. Mas antes do reconhecimento de um conflito entre modalidades da existência, entre diferentes singularidades e éticas - um conflito que, em última instância, não poderá não deixar de existir devido a essa mesma pluralidade. Sendo que, poder-se-ia dizer, o conflito ético-político mais importante passa pelo confronto com as práticas e concepções do mundo que colocam em causa a existência, singularidade e potência, enquanto tais e não dependentes deste ou daquele predicado - isto é, um conflito em relação tanto ao que visa o total anulamento da existência como em relação ao que visa a anulação da sua potência, sempre contingente (de onde se poderia incluir o capitalismo a outras formas de dominação e destruição sobre a vida, bem como, de forma associada, o conjunto de dispositivos e tecnologias de poder que atuam nesse sentido). 
Por fim, voltando ao straight edge ao mesmo tempo que arriscando bastante na especulação, poderíamos ver neste movimento uma modalidade, entre outras possíveis, do afirmado. O reconhecimento da dimensão política da vida em geral e da cada gesto em particular, num constante processo de devir, não separando e indo além da oposição entre pessoal e político, isto quando não caindo numa atitude moralista ou numa "mera" redução a um plano estético (mesmo que tal nunca seja inteiramente possível, pelas próprias relações que existem entre estética e ética), poder-se-ia dizer que o straight edge poderá representar uma conduta e a construção de uma ética em comum com claras implicações e preocupações políticas.