segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Da ética de Goku

Algo que poderá justificar o sucesso do anime Dragon Ball (nas suas diferentes fases) poderá residir na capacidade de, mesmo que subtilmente, este não se basear na repetição de outros projectos marcados por uma defesa abstracta de ideais como o Bem, a Justiça ou até a Amizade. Nem mesmo, por mais contraditório que possa parecer, do uso e supremacia da força para os fazer cumprir (algo que, se levado a um nível mais fundo, até poderá ser tomado como problemático tendo em conta a relação entre meios e fins que tal princípio estabeleceria, tomando o critério da força como decisor da verdade e dos princípios que, supostamente, deveria regular a existência). Mesmo sendo verdade que tais temas não estão de todo ausentes, estes vão surgindo em contextos que os problematizam em situações e disputas específicas, complexificando muitas vezes as próprias oposições e fazendo uso da ambiguidade - inclusive como estratégia para manter o interesse na própria série de animação. Porventura, tal observa-se de forma mais decisiva no protagonista da série, Son Goku, em relação ao qual até se poderiam atribuir de forma mais categórica os ideias e intentos de defesa do Bem, da Justiça. da Paz, e da Amizade, bem como pelo facto de se tratar da personagem tida como sendo a mais forte (ainda que nem sempre o seja, e nem sempre seja aquele que vença os principais inimigos que vão surgindo). Este breve texto debruça-se sobre isso, e pretende salientar a importância de uma perspetiva ética que possa ir além de concepções normativas e categorias exteriores à singularidade de qualquer um/a e da imanência da situação em que se encontra. Reconhecendo, contudo, que são diversas as éticas que guiam as existências e evoluções das diferentes personagens e, em particular, a forma como se reflectem na forma como lutam e nas razões que encontram para tal. No entanto, e sendo relativamente esquemático e orientado para o que se pretende aqui apresentar, enumeraria 3 grandes tipos. 
Uma 1ª baseada nos tais ideais de Justiça e de defesa da Paz e da existência das pessoas de que gostam, bastante exemplificada em personagens como Son Gohan e Future Trunks, os quais tendem a basear e encontrar em tais conceitos as suas principais razões para lutar (mesmo que em ambos a sua capacidade aumente essencialmente através dos sentimentos de raiva/revolta, e mesmo que tal sentimento surja a partir dos ideias que defendem). Esta ética é várias vezes tida como insuficiente, e ambos, ao longo da história da série, recebem conselhos de que o seu potencial e a própria capacidade de defenderem os seus ideias poderá não ser atingido caso não mudem. Esta situação é particularmente exemplificada no mais recente Dragon Ball Super, numa situação em que Vegeta refere a Trunks que o seu objetivo não poderá ser simplesmente o derrotar o sujeito X ou Y, mas sim tornar-se mais forte de forma a tornar-se mais capaz de lidar com qualquer eventualidade e adversário e, por extensão, conseguir cumprir o que se propõe:
Outra ética de luta é representada pela maioria dos inimigos que vão surgindo ao longo da série. Para estes, o que está em jogo é, geralmente, fazer uso da sua força de forma a serem reconhecidos como os mais fortes (do mundo, do universo, etc) e dominarem e/ou destruírem o que possam encontrar (desde logo, quem lhes possa ou pretende fazer frente). Muitas vezes tais objetivos misturam-se com sentimentos de orgulho ou de vingança (como se torna bastante claro na personagem de Freeza, o qual, nos seus reaparecimento ao longo das séries, é totalmente motivado pelo desejo de vingança em relação a Goku). Em todo o caso, o que se encontra em todos estes casos é uma ética que se funda sempre em função de um exterior. E mesmo que qualquer ética seja sempre relacional, a questão aqui expressa-se na determinação que é dada a esse exterior. As existências aqui em jogo, mesmo que actuando de um ponto de vista egoísta, encontram-se sempre dependentes de um exterior para a sua própria validação/legitimação. Além disso, e por muito que tal possa parecer contraditório tendo em conta a sua dependência em relação a um exterior, observa-se uma incapacidade de relacionamento com outras existências e singularidades.
O fundamental da 3ª ética já foi referida anteriormente, consistindo em grande parte na resposta que Vegeta dá a Future Trunks. Esta ética poderá ser exemplificada em Vegeta e em Son Goku, ainda que de formas diferentes - e é um pouco sobre essa diferença que me interessa focar, até para o objectivo de se poder pensar uma ética e uma prática do cuidado de si que, mesmo que à primeira vista possa encontrar-se alicerçada numa dimensão individual, permita ir para além dos principais problemas associadas a esta e da própria oposição entre individual e colectivo.
A relação entre Vegeta e Goku é uma das principais relações da série, se não mesmo a principal. Inicialmente um inimigo de Goku, Vegeta (o príncipe dos Guerreiros do Espaço/Saiyajins) vai-se tornando o seu principal aliado nas várias lutas que travam para defender a Terra/Universo (ainda que por vezes com revezes, como acontece a determinado em momento, quando Vegeta se deixa ser controlado por um inimigo de forma a soltar a sua raiva e espírito anterior e assim tentar derrotar e superiorizar-se a Goku). Entre eles existe uma rivalidade, maioritariamente alimentada por Vegeta, que os leva a evoluir mutuamente mas que é experienciada de forma diferente pelos dois e que explica parte das variações referentes às inclinações éticas que os animam. Sendo verdade que ambos treinam e lutam para se tornarem o mais fortes possíveis e também lutam para defender a Terra/Universo e as pessoas que lhes são mais próximos, mas existe uma diferença nas razões para tal. Apesar da sua evolução ao longo das séries, Vegeta não deixa de ser bastante influenciado pelo seu orgulho e marcado pelas derrotas que vai tendo, e o que o essencialmente motiva é tornar-se o ser mais forte do Universo (e, por extensão, mais forte que Goku). Também é verdade que Goku não rejeitaria propriamente a possibilidade de se tornar o mais forte, mas o que verdadeiramente o motiva para treinar lutar é outra coisa: o prazer que encontra nas lutas como uma forma de contínua superação e teste de si mesmo, como uma forma de comunicação e partilha com outros, sem que tal processo adquire outra finalidade ou exterioridade que não o treino e a luta em si. De forma algo esquemática, é a diferença entre pretender ser o mais forte, e pretender ser mais forte. Algo que é referido pelo próprio Vegeta, como se poderá observar no seguinte vídeo:

Até pela mitologia da série, o facto de serem apenas estes dois os únicos que são 100% Saiyajins poderá explicar parte da sua ética (numa relação, que poderá ser tomada como essencialista, entre uma dada existência/singularidade e uma dada potencialidade), bem como explicar a sua diferença em relação a Gohan e Trunks ("metade humanos/terráqueos"), e, porventura, a própria diferença entre Vegeta e Goku (este último tendo vivido quase toda a sua vida na Terra, como se se pretendesse opôr uma natureza guerreira dos Saiyajins a uma qualquer dimensão "humana" presente no planeta Terra).                                    
O elemento de comparação presente em Vegeta é distinto de um certo centramento em si por parte de Goku, na medida em que a grande necessidade de reconhecimento do primeiro não se estende ao último. As suas acções e objetivos não se restringem a uma qualquer finalidade e exterioridade a si. E mesmo quando este deseja lutar e testar-se contra outros (algo que anseia constantemente por fazer, em particular contra adversários mais fortes - situação ligeiramente diferente em Vegeta -), tal vontade surge essencialmente do reconhecimento de que tais lutas e relações que aí se constituem permitem um teste de si e um maior conhecimento de si através da experiência concreta dessa luta e do conhecimento que poderá adquirir. Ou seja, trata-se da relação que Goku estabelece com um outro, bem como do outro em si.
Contudo, e mesmo que tal marque a ética do protagonista da série nas lutas, não se trata da única característica que o distingue, existindo outras que, no seu conjunto, se relacionam com esta e até a possibilitem. Por exemplo, em várias situações Goku coloca-se numa posição deliberada de vulnerabilidade, em que abdica de usar toda a sua força (aliás, raramente o faz), entrando várias vezes numa luta com o objectivo deliberado de se colocar em risco (mesmo que se possa dizer que, dada a sua força, se trata de um risco calculado), como se de uma "brincadeira a sério" se tratasse, em que vai procurando conhecer a outra pessoa, a sua energia, as suas técnicas, e procurar relacionar-se com essa pessoa sem impôr necessariamente a sua vontade, pelo menos, ao início - mas antes abrir-se ao que possa surgir do outro. Esta situação é particularmente exemplificado num episódio recente, no qual Goku, de forma secreta, contrata um assassino, que é também o guerreiro mais forte que conhece, com a ordem de matar Goku, apenas para poder lutar contra ele no seu máximo:
Como também demonstrado na actual saga de Dragon Ball Super, respeitante ao denominado "Torneiro do Poder", a participação de Goku não é motivada pela necessidade de vencer de forma a impedir que ele próprio e o seu universo desapareçam como poderá acontecer caso perca - ainda que tal também seja algo que pretenda atingir. Mas, acima de tudo, e como o próprio afirmou de forma desafiante várias vezes, ter a oportunidade de lutar contra os guerreiros mais fortes dos vários universos e assim se poder testar. A sua participação não se guia por qualquer estratégia que não o aproveitar e experienciar tal momento para se testar e evoluir o seu potencial. Quando luta contra adversários mais fracos procura guardar energia e baixar um pouco a sua guarda de forma a poder aprender com as técnicas de outros. Ao mesmo tempo, constantemente procura lutar contra os adversários que lhe parecem ser mais fortes. Inclusivamente, uma vez ajuda um dos seus principais rivais numa situação em que este poderia perder, apenas para ter a oportunidade de lutar contra ele no final.
A luta é a forma de comunicação por excelência de Goku, o meio em que partilha com outros a sua singularidade e procura genuinamente conhecer e, se possível, mudar outras pessoas (como seja nos seus objectivos de destruição). Tal concepção, se alargada a outras dimensões, e abusando de forma deliberada alguns debates sobre a relação entre amigo e inimigo, permitem-nos tirar conclusões sobre uma inclinação ética possível para lidar com outros, com a diferença, com a adversidade, etc. Trata-se de um aceitar da possibilidade de ser afectado por outros éticas e energias, de uma constituição de si com outro (nem que seja através do confronto) - algo que também implica um reconhecimento da contingência (desde logo, da contingência da própria luta).
Torna-se, assim, necessário o reconhecimento do inimigo enquanto sujeito, o que ocorre em Goku. Alguns dos seus inimigos posteriormente tornam-se amigos (como acontece com Vegeta). Alguns deles, mesmo quando derrotados por Goku, não deixam de merecer o seu respeito. Como é exemplo esta situação em que, prestes a vencer um inimigo, admite a admiração que tem por ele enquanto ser, pela sua capacidade de contínua mudança, pela luta que lhe permitiu, e inclusivamente desejando que este possa reencarnar noutra pessoa para uma outra luta:
O limite de Goku parece surgir quando, e novamente pedindo emprestado outra categoria, o inimigo se torna em hostil, indo não contra a sua potencialidade mas sim contra a sua própria existência (bem como a existência da Terra/Universo e das pessoas que lhe são próximas). Porventura, essa é a outra característica central da ética de Goku, o respeito por toda e qualquer existência, pela existência enquanto potencialidade. Trata-se, assim, de uma combinação, como se de dois pólos em relação se tratassem, entre um desejo de combater e um respeito pela existência, mutuamente constituintes. Neste sentido, poder-se-ia ainda identificar um certo vitalismo presente nesta série (particularmente exemplificado nas referências à energia de vital e ao "controlo do Chi" por parte das diversas personagens, de onde surge o seu poder), o qual também se estende a outros projectos de manga/animes (e tanto se poderia ainda dizer sobre isto...).
A luta/confronto é aqui tomada, então, como uma das dimensões da existência, mesmo que não seja a única. E ainda que se possa ver aqui traços de uma dimensão individual e empreendedora, tida como característica da actual sociedade neoliberal, seria bom não nos deixarmos prender a uma visão assimétrica do capitalismo e das éticas que o animam, nem sequer da correção do que seriam os males da "natureza humana". A sua derrota não se faz com a derrota de características que se encontravam presentes já antes da sua emergência, mas sim do que o torna singular (mesmo que este agora já não encontre exterior e se tenha estendido à sociedade, não existindo propriamente dimensões "neutras" que simplesmente se possam usar - na maioria das vezes acontece precisamente o contrário). Além disso, e como aqui se salienta, tal vontade de superação adquire uma outra tonalidade quando associada à sua singularidade e potencialidade e sem se encontrar restrito a uma qualquer finalidade exterior - como acontece com Goku, a sua vontade de lutar não se deve à procura de qualquer título ou resultado, a uma superação ou destaque face a outras existências.
Como pensar, então, tais questões numa perspectiva coletiva? Reconhecendo-se, desde logo, que a potencialidade que temos não é a mesma que têm Goku e restantes Saiyajins (mesmo que que estes não se superem e vencem necessariamente por serem mais fortes). No entanto, é óbvia a diferença entre o seu enquadramento numa ficção, com os poderes que lhe são conferidos e o guião construído, e a situação "real". Um primeiro aspecto poderia consistir em recordar que Goku não treina e não luta para ser o mais forte, ainda que também tencione ficar mais forte ao testar-se continuamente (algo que poderá ter várias correspondências em outras dimensões para lá da luta). Mas, talvez, a principal questão seria a de estabelecer um projecto/dinâmica colectiva sem que este se encontrasse dependente de factores como o reconhecimento ou a tentativa de obter destaque, em que os sujeitos que se encontrassem presentes em tal situação fossem para lá de tais desejos e se implicassem num trabalho que é, em primeiro lugar, um trabalho de si sobre si e um trabalho realizado de forma relacional. Neste sentido, a animação para tais projectos e para a participação nos mesmos não se remeteria para algo exterior (o reconhecimento por parte de abstrações como a Sociedade ou a luta pelo poder Estado, mesmo que tais táticas possam ser usadas em situações concretas), nem pela tentativa de personificar protagonismos e lideranças informais, mas antes para a construção de algo que reconhecesse o sentido contingente e imanente do mesmo, realizado sobre si e em relação com outros.
Contudo, para pensar de forma decisiva tal perspetiva coletiva, muito mais se torna necessário. Desde logo, de experiências concretas e de relações.

(Nota: texto em edição)

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