sábado, 9 de dezembro de 2017

Acção, ataque, instinto, relação, ...

Tornou-se um lugar comum usar objectos da cultura popular em discussões que, pelo menos à partida, tendem a ser associadas a mundos supostamente não contaminados com aquela que seria a característica alienante e menos sofisticada de tais objectos. De várias expressões da arte contemporânea a várias correntes do que globalmente se poderia denominar de teoria crítica, os exemplos abundam. Respeitantes a gostos pessoais relativamente ao objecto, a tentativas de dissimular (ou mesmo, nas intenções mais "correctas", desconstruir) alguma erudição, ou meramente com um uso instrumental (seja ele ao nível de crítica de alguma falsa consciência ou como apologia de uma qualquer autenticidade que tais objectos melhor captariam), entre outros possíveis objectivos. Aqui não é a primeira vez que tal acontece (vide post anterior), e neste continua-se, novamente com referência ao mesmo objecto - o universo de Dragon Ball.
Num episódio recente, a personagem principal, Son Goku, utiliza novamente uma técnica (ou forma, ou, para ser mais correcto e parafraseando o autor da série, um "estado", a "state of being") recentemente introduzida na série, sobre a qual nos iremos debruçar aqui. O nome original, em japonês, é Migatte no Gokui, o qual é alvo de várias contestações quanto à sua tradução fiel. Popularizado enquanto Ultra Instinct, as traduções mais literais apontam para Key of Egoism ou Mastery of Self-Movement, as quais parecem reproduzir mais fielmente o significado do conceito bem como as questões que aqui serão abordadas. Algumas referências aproximam este conceito com um outro pertencente ao léxico das artes marciais, o de Mushin.
Para lá das dimensões estéticas e lúdicas, o que me interessa particularmente neste objecto e nesta referência passa pela possibilidade de abordar um tema que me é caro e que tem sido abordado de formas diferentes em alguns domínios filosóficos, seja como crítica à metafísica ocidental e às suas concepções duais de corpo e mente ou sujeito e objecto, a crítica da finalidade e exterioridade da acção e as questões que remetem para a presença no mundo, as possibilidades de relação com a filosofia oriental e em particular o universo das artes marciais (em particular nas suas influências taoístas e budistas). Questões certamente vastas e que também não serão exploradas com a profundidade devidas aqui, mas que servem como referência ao que se pretende realmente aqui discutir - o conceito e a prática de acção num contexto de relação entre dois corpos, em particular no caso de uma luta de artes marciais.
No episódio em questão, Son Goku atinge tal estado depois de ter sido levado a um situação limite e de, como referido, novamente ter sido capaz de ir para além dos seus limites internos. As capacidades que demonstra em tal estado permitem-lhe agir de forma instintiva, ou, como refere a personagem Whis (um anjo encarregue de cuidar e ensinar artes marciais ao "Deus da Destruição", e que na série igualmente treina Goku e Vegeta), ser capaz de usar cada parte do seu corpo sem depender de uma intencionalidade ou um processo de pensamento anterior a uma acção, isto é: de agir não tanto num sentido de uma reacção que exige uma resposta mental anterior para ser concluída (introduzindo assim um atraso na resposta), mas mais uma espécie de reflexo capaz de fazer com que o corpo responda de forma instintiva/automática e ajustar-se de forma fluída aos mais diversos estímulos (em particular, aqueles adversos, como no caso de uma luta). Como sucede no episódio em questão, Goku torna-se capaz de evitar qualquer dos golpes da adversária (Kefla) que ainda anteriormente o tinha colado numa situação complicada, bem como de vencer uma luta que anteriormente parecia bastante complicada.
Como se torna óbvio, tal estado, a existir e em que forma (podendo-se abordar a própria relação entre conhecimento e corpo, intenção e acção, etc), não se revela fácil de atingir. Sem fazer grandes pesquisas (o que claramente é um erro), a página da Wikipédia do conceito de Mushin refere alguns dos arquétipos das artes marciais, salientando que tal estado representa uma atitude Zen de mind without mind, em que alguém consegue esvaziar a sua mente e ao mesmo tempo deixá-la aberta a tudo, como que num estado de meditação. Estas ideias levam-nos para várias caminhos, mas parecem-me bem sintetizadas na seguinte formulação: "Mushin is achieved when a person's mind is free from thoughts of anger, fear, or ego during combat or everyday life. There is an absence of discursive thought and judgment, so the person is totally free to act and react towards an opponent without hesitation and without disturbance from such thoughts. At this point, a person relies not on what they think should be the next move, but what is their trained natural reaction (or instinct) or what is felt intuitively. It is not a state of relaxed, near-sleepfulness, however. The mind could be said to be working at a very high speed, but with no intention, plan or direction." As implicações desta concepção são várias e não unicamente circunscritas a um contexto de luta, antes potencialmente extensíveis ao quotidiano em geral, ao uso do corpo, associando-se as já anteriormente referidas críticas das oposições entre corpo e mente, sujeito e objecto ou sujeito e acção. Trata-se de uma concepção claramente divergente das concepções ocidentais de sujeito, tomado enquanto um indivíduo de limitações precisas e dotado de um pensamento, intencionalidade e capacidade de acção livre e potencialmente influente no mundo. Isto é, um conjunto de questões que para além de filosóficas e/ou respeitantes ao universo das artes marciais, também são questões éticas e políticas, com claras conotações sobre a constituição de sujeitos e de cosmologias no mundo ocidental. Contudo, e apesar do interesse nas mesmas, deixar-se-á tal exploração para outros textos.
Voltando ao episódio em questão e ao que tal sugere em termos de luta, é de salientar a referência final de Whis quando este resume o combate entre Goku e Kefla e aborda os limites do protagonista em atingir tal estado. Algumas das principais dificuldades mas também dos pontos mais interessantes sobre este conceito e prática são enunciados por Whis. A questão salientada aborda a ideia de "atacar inconscientemente/instintivamente", a qual é tomada como a parte mais difícil para o domínio do estado de Ultra Instinct. Enquanto que a defesa pode ser vista como uma resposta a um estímulo (e possível intencionalidade) exterior, o ataque, pelo menos na forma como geralmente concebido, implica uma intencionalidade e uma dimensão de eficácia que introduzem atrasos temporais, moldando a acção ao pensamento e emoção do momento. Não se trata tanto de um estatuto superior do ataque em relação à defesa, mas acima de tudo a forma como o ataque se encontra associada a conceitos que fazem parte das concepções tradicionais (pelo menos no ocidente) de acção, ligadas à vontade, à intencionalidade, autonomia do sujeito, eficácia, separação entre sujeito e objecto, etc. 
Assim, a possibilidade de, tal como numa acção de defesa, também um ataque ter uma dimensão instintiva representa uma clara mudança de paradigma sobre a própria ideia de acção. Sendo que, para além do já referido, e partindo do enunciado por Whis, se poderia ainda colocar uma outra hipótese. Não só pensar uma prática de ataque para lá de uma projecção de intenções e influenciada por vários pressupostos (escapando a um pensamento que se prende quando focado num dado fim, como poderá ser a tentativa de "acertar", "acertar num dado local", ou inclusivamente a intenção de atingir tal estado), como se poderia falar da possibilidade de introdução de uma concepção ética e relacional em que mesmo um ataque deixa de estar preso à exigência de "inculcar dano no outro", para lá da intenção de magoar o outro, mas ao invés a possibilidade de se relacionar com tal sujeito de uma forma situada e imanente, para lá de um intuito e reacção (como poderia ser uma situação de vingança, resposta, domínio, etc). A introdução de uma dimensão de jogo (play, como entendido nos debates éticos sobre este conceito), para lá do ganhar ou perder e em que ambos se encontram presentes e num possível crescimento mútuo no contexto da acção, escapando assim às concepções metafísicas ocidentais e aos seus ideias de intenção, vontade, reconhecimento, ganho, culpa, etc.
Uma tarefa que é, reconhece-se, essencialmente prática e situada. 

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