terça-feira, 14 de abril de 2015

Hillary e a redução do possível

A recente candidatura à presidência dos EUA, anunciada por Hillary Clinton, e a sua possível eleição, pertencem a um plano institucional e elitista da política que me interessa muito pouco. No entanto, a partir deste caso, torna-se possível pensar algumas questões e tensões que surgem no âmbito do ativismo, e que importa explorar. Neste sentido, interessa-me não tanto elencar o que de errado existe ou possa existir associado a Hillary (algo que, por exemplo, pode ser encontrado aqui e aqui), mas o que este caso representa ao nível das relações entre política e simbolismo/representação, política e visibilidade, movimento e institucionalização.
Em particular, este caso situa-se no âmbito das discussões e múltiplas visões dentro do feminismo. A sua relação com o movimento encontra-se desde logo marcada pela forma como determinadas posições feministas tendem a apoiar e a ver em Hillary uma figura e uma líder que poderá fazer avançar a luta feminista (nem que seja assumindo que a eleição de uma mulher é sempre uma vitória feminista), bem como aquilo que são as próprias posições feministas tomadas por ela (ainda que, e fazendo uso de alguma linguagem utilizado dentro do feminismo, se possa dizer que o feminismo de Hillary é um feminismo mainstream, liberal, branco, de classe, em suma, privilegiado). Tendo em conta estes dois factores, tornava-se assim previsível que não só parte do feminismo visse em Hillary a sua candidata, como a própria Hillary tomasse o feminismo - ou parte dele - como um movimento a partir do qual pode tirar ganhos políticos.
Assim sendo, tendo em conta aquilo que são as posições de Hillary e a sua relação com o feminismo, admito que se torna difícil compreender a relativa aceitação - e até mesmo entusiasmo - que a sua candidatura recebeu em alguns sectores do movimento (novamente, em particular naqueles que são os sectores mais privilegiados do mesmo). O percurso de Hillary (consultar os dois links deixados em cima) não augura nada de bom relativamente a uma possível governação sua, e muito dificilmente a sua política poderia ser considerada como feminista, e ainda menos conotada com um feminismo intersecional. Sendo que, é certo, tal não deixa de se ver, e seguramente de forma ainda mais decisiva, àquilo que são as estruturas sociais e relações de poder atualmente existentes, as quais são claramente limitadoras daquilo que é possível fazer (desde logo num quadro institucional), e que certamente não são simplesmente reformáveis a partir de uma só pessoa, mesmo que essa pessoa ocupa uma posição de poder com tamanha centralidade e importância.
Antes de avançar, importa só esclarecer que, apesar de tudo, é de reconhecer a importância simbólica e de representação que estaria associada a uma eleição de uma mulher como presidente dos EUA, a qual seria a primeira da sua história. O simbólico também importa na política, e certamente que esse facto não é de somenos em termos daquilo que é a estruturação simbólica do patriarcado, em particular ao nível da atribuição de lugares de poder a determinados géneros, com efeitos simbólicos e performativos que são de considerar. Além disso, a crítica a Hillary deve evitar o argumento recorrente, e falacioso, de associar de forma redutora e exclusiva a presença de mulheres, em lugares de destaque na política, a figuras como Merkel, Largarde ou Thatcher. Sejamos claros, a crítica não deve nem ignorar as dimensões simbólicas associadas à chegada de uma pessoa de uma minoria historicamente marginalizada e discriminada a um lugar de poder, nem, de certa forma, reproduzir uma lógica machista que não só associaria o papel das mulheres na política a algo de negativo, como reproduz a lógica existente na sociedade de constante procura e exigência de "perfeição" em relação às mulheres, como se a elas fosse exigido mais para ter acesso e merecer o mesmo - ainda que esse "mesmo" seja algo de tão desprezível e palco do pior que há na política e na sociedade, como ocorre com a presidência dos EUA.
No entanto, e voltando ao raciocínio anterior, não posso deixar de considerar um erro o apoio de certos sectores feministas a Hillary. Não só porque aquilo que é a reprodução de uma concepção e de uma linha mais privilegiada dentro do feminismo, mas também pelos riscos de uma constante "institucionalização" do feminismo que o tem tornado não só cada vez menos crítico das relações de poder na sociedade, e que, no caso em análise, corre ainda o risco de ser visto como uma cooptação do mesmo - à semelhança da utilização do feminismo aquando da invasão do Afeganistão e do Iraque, o feminismo agora é utilizado para legitimar o biopoder, associando o feminismo aos interesses e às políticas dominantes (classistas, machistas, heterossexistas, racistas, imperiais, etc), descredibilizando o próprio movimento com tal gesto.
Neste sentido, a questão principal está na forma como, com tal apoio de sectores feministas e com a instrumentalização do feminismo por Hillary, se dá uma reprodução das lógicas de diferenciação e desigualdade social e política, uma clara reprodução das relações de poder e não uma crítica e um ataque às mesmas.
O biopoder, as suas instituições e formas de atuação são reproduzidas e legitimadas - neste caso, através da incorporação de vozes que se suporia como críticas. Algo que, na minha opinião, deve-se igualmente a uma concepção da política, e em particular de a imaginar e de a praticar, que não posso deixar de tomar como redutora - trata-se de uma visão que adere, muitas vezes de forma acrítica, à retórica do "mal menor" e do "voto útil", uma política defensiva e de mínimos (garantindo-se algumas cotas e alguns direitos de facto, mas sem que as estruturas sociais que originam as desigualdades sejam alvo de crítica e obrigadas a alterar-se, se não mesmo a serem transformadas totalmente). Além disso, é notória uma visão da política que tende a conceber o poder como algo de centralizado e localizado em alguns espaços de poder, e não como imanente à sociedade, em termos de relações de poder que estruturam o possível. Uma visão da política reduzida à dimensão institucional e individual, e que assim reproduz e legitima uma política e uma sociedade individualista, elitista e fundamenta em hierarquias (desde logo, entre representantes e representados).
Estou consciente das dificuldades de tal estratégia, mas não consigo deixar de conceber como melhor opção uma política que procure, tanto quanto possível, não reproduzir o biopoder e as suas lógicas de atuação política. Em particular, acredito que mais do que apoiar Hillary e esperar que desse apoio surja uma transformação ao nível das relações de género, seria melhor procurar criar um movimento autónomo.

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