quinta-feira, 2 de abril de 2015

Política e identidade

Recuperando as reflexões no post anterior, no qual procurei - ainda que sem chegar a qualquer conclusão final e definitiva -, pensar não só a possibilidade como a suposta necessidade de uma política sem um sujeito político e uma identidade definida (pelo menos à partida), acredito que um conjunto específico de questões podem e devem ser colocadas, as quais brevemente anunciei no final desse texto.
Em particular, e expondo agora de forma mais clara a preocupação final referida no post anterior, um dos problemas possivelmente colocados a um pensamento e a uma prática política realizada em tais termos, seria o de não considerar, na devida forma, aquilo que são as atuais desigualdades de poder entre diferentes grupos sociais. Nesse sentido, e mesmo que procurando pensar ou uma política por vir - já não determinada por uma forma social e política particular -, ou simplesmente procurando "renegar" no momento presente aquilo que é o contexto e as identidades particulares e subjectividades que são produzidas pelo biopoder - uma política que quase que pretenderia escapar a uma especificidade histórica concreta -, e que, possivelmente, teria como consequência uma menor consideração de determinadas formas de descriminação e opressão experienciadas por grupos sociais particulares (mulheres, negros, população LGBTQ+, ...).
Esta é, evidentemente, uma questão com uma longa história no âmbito da política e dos movimentos sociais, a qual ganhou particular destaque nas décadas mais recentes - em particular, no quadro daquilo que se pode considerar como uma menor centralidade conferida à denominada classe trabalhadora, envolvendo um questionamento da universalidade e do papel histórico que lhe foi associado (havendo inclusive quem afirme o seu fim), e a emergência de uma diversidade de subjectividades e identidade políticas no âmbito da ação política. 
No entanto, e até por não ter tal pretensão, não será neste texto que se recuperará todo o debate produzido, nem se explorará aquilo que são quer os pontos comuns quer as divergências entre as diferentes posições, possíveis limitações e aspectos futuros a considerar. Ainda que, e como breve nota, não posso deixar de referir que, na minha opinião. se trata de um debate muitas vezes marcado e preso em falsas dicotomias, como sejam as de universal e particular, ou as de identidade e diferença.
Contudo, neste texto, interessa-me sobretudo explorar aquilo que são algumas propostas recentes que, mesmo que potencialmente enquadráveis em algum "dos lados" deste debate, surgem de uma forma que, devido à sua singularidade, permitem não só redefinir cada uma dessas posições, como potencialmente ir para além destas. Em particular, pretendo focar-me no pensamento de Agamben, autor que não só não seria enquadrável numa política de identidade, como dificilmente seria reconhecido como estando no outro campo, pelo menos por aqueles mais irredutíveis na defesa de uma política centrada na visão da classe operária como dotada de universalidade e com um papel histórico por cumprir. 
Para a problematização que pretendo desenvolver e aqui apresentar, parece-me que aquilo que de mais significativo poderemos retirar de Agamben passa não só pela forma como este pretende ir para além de determinadas dicotomias ou pólos que estruturam o pensamento político contemporâneo - desde logo o de universalidade ou particularidade - através de propostas conceptuais como as de forma-de-vida ou de singularidade (nas quais vai além da dicotomia entre individual e coletivo, por exemplo), mas, acima de tudo, pela forma como nos apresenta as potencialidades de tais formas de conceber e praticar a política em tais termos. 
Em primeiro lugar, Agamben recorda-nos o perigo que é o estabelecimento de uma política centrada na identidade, e, em particular, na forma como tal política, geralmente associada à luta pelo reconhecimento de direitos, acaba por reproduzir aquilo que é a própria lógica em que se funda o biopoder, reproduzindo assim a própria soberania aquando da sua relação específica com o Estado - e, logo, o estado de excepção que se tornou norma, bem como a vida nua, uma vida sem forma, uma vida não-política, uma vida sem poder e sujeita a um poder exterior.
A forma de superar o atual estado de excepção e de se criarem formas-de-vida singulares capazes de ir para além deste, não deixa de constituir uma interrogação que apresenta tanto de complexo como de fundamental. Sendo que, e agora focando-nos na forma como esta questão se cruza não necessariamente com uma política de identidade, mas com aquilo que são as desiguais relações de poder existentes na sociedade, em particular ao nível das relações entre diferentes grupos sociais, poderíamos questionar até que ponto a necessidade de realizar o projecto político anteriormente identificado não terá de implicar uma consideração crítica e particular das relações de poder atuais. Isto é, e aqui assumindo uma posição que responde afirmativamente à questão anterior, não apenas uma política que reconheça aquilo que é a já referida produção levada a cabo pelas relações de poder atuais - e que, assim, reconheça que não existe nada de natural e ontológico em ser-se "homem" ou "mulher", "branco" ou "negro", "heterossexual" ou "homossexual", "cis-género" ou "transgénero" -, mas que tenha quer como pressupostos quer como horizonte uma ética capaz de considerar e transformar as relações de dominação e opressão atualmente existentes (relações essas que não apresentam um centro único e que, como tal, não são unicamente derivadas do Estado), as quais não deixam de se encontrar relacionadas com as normas e relações produzidas pelo biopoder, e que, como tal, são responsáveis pela restrição e reprodução de determinadas possibilidades políticas, do possível.
Se o objectivo passa pela constituição de formas-de-vida (enquanto conjunto de singularidades sem identidade; num sentido potencialmente próximo à noção de multidão como apresentada por Negri), as quais não são nem particulares nem universais, marcadas nem pela mesmidade nem pela diferença, meramente individuais ou colectivas, identitárias ou não-identitárias, e que, mesmo que sendo tomadas de forma processual e aberta, não deixam de implicar, face ao apresentado, o questionamento das identidades e práticas atuais. Assim, e como exemplo, importa pensar uma forma-de-vida onde a singularidade que a constituí não seja definida pela sua adequação a determinados modelos de masculinidade ou feminilidade, mas , precisamente, vá para além destes e das dimensões normativas e normalizadores que preconizam.
Existe, assim, a necessidade de, mesmo que não partindo de uma política identitária -ainda que podendo adoptar uma política que tenha em linha de conta as diversas singularidades -, considerar e criticar aquilo que são relações de poder e significados culturais específicos, de forma a que, no momento de constituição de formas-de-vida, não sejam tomadas como naturais - mesmo que de forma "inconsciente - aquelas que são as identidades dominantes. Sendo que o perigo que tal aconteça é uma das principais questões introduzidas pelas reflexões produzidas ao nível das políticas de identidade, e não só. Algo que se fundamenta pelo facto de a reprodução identitária, e da lógica pela qual funciona o biopoder e o estado de excepção, não ser exclusiva da adoção de uma política de identidade por parte de minorias políticas. Mas, e talvez ainda de forma mais decisiva, esse perigo coloca-se precisamente caso sejam tomadas como naturais - e, logo, não questionadas -, as identidades atualmente dominantes e privilegiadas, e que assim poderiam influenciar, de forma decisiva, as formas-de-vida a constituir. Ou seja, e concluindo com um regresso a um texto anterior, trata-se da necessidade de colocar em prática processos de desidentificação e de subjectivação.

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